Da rua do Lavapés para o Guarujá

Quando criança eu ficava assustada e inquieta quando os meninos da rua se organizavam para ir à rua do Lavapés em pleno sábado de Aleluia. Rua do centenário bairro do Cambuci. Os garotos procuravam paus e pedras e, com orgulho, se dirigiam ao local marcado para a malhação... e dá-lhe, Judas. Rindo, eles iam, aos montes, à tarefa que, mal sabiam, remontava à Idade Média, dos obscuros tempos da Inquisição.

O tempo foi passando, a tradição de oitenta anos no bairro foi , lentamente, perdendo o seu significado e muitas das crianças, hoje, mal sabem o que isso representa.

E aí me dei conta de que a coisa piorou e muito. A malhação se tornou de uma crueza inenarrável, delirante,apavorante a último grau.

Nada mais arrasador e deprimente que o caso do linchamento da dona de casa no Guarujá no início desse mês. Uma Judas contemporânea, que nem soube o que fez para morrer.

Um simples boato e a turba se formou com paus e pedras na mão e a pobre Fabiane ainda teve que sofrer com um “passeio” de bicicleta sobre a cabeça, que diga-se de passagem, tinha duas filhas, sendo a caçula de um ano. Isso mesmo: um ano, de fraldas e profundamente dependente da mãe. O que fazer com o seu olhar choroso e amargurado procurando a mãe por todos os cantos da casa? O que dizer a ela? Como confortá-la e dizer que a vida é assim mesmo?

E hoje, dia das mães, o que a mais velha, de doze anos, faria ao querer entregar a lembrancinha feita na escola , especialmente para a data?

Mas a turba se formou com uma rapidez estonteante após o grito de uma fulana: “é essa aí, a bruxa”. Bruxa? Isso é coisa de Idade Média. Com certeza, Idade Média seria avançada demais para as atitudes dessa massa insana do Paleolítico Inferior.

Até quando? Eu pergunto: até quando nós vamos passar a mão na cabeça dos nossos filhos quando os mesmos forem cruéis com colegas ou com animais? Até quando vamos fingir que não sabemos que ele trouxe para casa algum objeto do outro, dizendo “achado não é roubado” e seremos cúmplices risonhos da atitude supostamente sagaz do rebento.

Até quando vamos deixar que quebrem brinquedos ou outros objetos “dos outros”, tirarão o pedaço maior do bolo, passarão a perna nos semelhantes e não falaremos nada?

E aquela hora que o filho trapaceia na escola, nas notas, rouba da gráfica uma cópia da prova e sai rindo dizendo “quem não cola não sai da escola” e a gente ri da “banalidade” da ação? E tem uns que ainda vendem uma cópia da prova para os colegas de sala, se achando o tal. E ainda saem reclamando do professor – aquele “babaca, com cara de idiota”.

E outros logo virão com a boca aberta: “faltam políticas públicas”. O que falta mesmo é vergonha na cara de todos os cidadãos, políticos ou não. Falta sensibilidade, entendimento, compaixão. Falta discernimento. Um boato desde quando pode virar uma verdade absoluta ?

Estamos imbecilizados, medíocres e ignorantes. Boçais. Ou a humanidade se repensa com alguma maturidade com urgência absoluta e começa a agir com dignidade e para de abrir a boca para julgar os outros ou não teremos saída a não ser conviver com a barbárie e vendo nela naturalidade. Que tenhamos a coragem de crescer, nos tornar homens e mulheres e não eternos bebês chorões à espera de um Estado tutor, policialesco que nos imponha leis e só.

Somos gente. Pessoas com razões e emoções. E devemos buscar o equilíbrio nas nossas ações. Discernimento, respeito ao próximo e exercitar a vergonha na cara. Tudo não passa de uma questão óbvia: a da sobrevivência da espécie

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 12/05/2014
Código do texto: T4803544
Classificação de conteúdo: seguro