Deixando de leseira.

Era para ser apenas um dia normal de trabalho em um posto de saúde do interior com uma lista cheia de pacientes e suas peculiaridades.

Mas uma senhora de meia-idade entrou no consultório com um olhar indiferente, sentou com braços cruzados na minha frente e respondeu o meu amigável "bom dia!" com um sorriso torto e olhar atravessado tal como se eu a tivesse ofendido.

Após uma discreta olhada no prontuário, certifiquei-me que tinha chamado o nome de Dona Fulana corretamente e iniciei a tradicional conversa médica sabendo que estava diante de um desafio.

Dona Fulana estava "desenganada" da vida.

Não tomava mais seus remédios, seus exames estavam em sua maioria alterados, não fazia dieta nem exercícios, não possuía nenhum lazer e se negava a tomar qualquer atitude.

Dona Fulana estava na iminência de uma depressão, mas seus movimentos corporais não condiziam com suas palavras: algo dentro dela, ainda lutava e seu tom de voz áspero a denunciava.

Perguntei sobre sua vida, sua família, seu cotidiano.

Suas respostas eram curtas, mas notei uma suavização de suas expressões. Ela era sem dúvida uma guerreira e minha abordagem indireta e passiva não iria ter sucesso.

Mudei então de tática.

-Dona Fulana, seja sincera: o que está acontecendo com a senhora? - Perguntei.

-Problemas, Dotôra! Problemas... - Ela respondeu aflita.

- Mas Dona Fulana, explique-me que problemas são esses que fazem a senhora não querer cuidar de si mesma? - Interroguei tal como uma professora que mostra uma resposta à pergunta de sua aluna.

-Problema de dinheiro, Dotôra! É tudo eu naquela casa! A senhora não sabe o que é isso, não sabe o que é ganhar pouco e ainda sustentar um monte de gente!! - exclamou com olhar raivoso e tom intimidador.

Eu havia finalmente tocado na ferida que ela não queria mexer e sabia que suas palavras de fúria eram apenas um mascaramento de seu pedido de ajuda.

Sem pensar, simplesmente coloquei minhas mãos em cima das suas, gesto que ela não esperava, e iniciei a falar bem séria e pausadamente:

-Dona Fulana, nenhum problema do mundo...escute-me bem,NENHUM! Merece mais sua atenção do que a sua saúde. Sem saúde a senhora não pode viver. Sem saúde a senhora não pode ter o bem estar físico e mental fundamentais para sacudir os pensamentos negativos e ir atrás das soluções para seus problemas. Não deixe que seus problemas sejam mais importantes do que você.

Quando acabei, Dona Fulana estava com os olhos arregalados: claramente ela não esperava a minha "bronca".

E como se o fio da compreensão a tivesse atravessado, observei seus olhos voltarem a brilhar.

- É mesmo, Dotôra! Que leseira a minha...Pode deixar, vou fazer direitinho agora!

Dona Fulana pegou sua receita e saiu cheia de planos, não sem antes parar na porta e me dar um sorriso sincero:

-Obrigada, Dotôra! Tudo de bom pra sinhora!

Meu corpo ainda estava se recuperando de uma virose que me deixou de cama por duas semanas.

Minha mão estava dolorida e com alguns dedos quase travando de tantas receitas acumuladas no meu período de ausência.

Eram mais de três da tarde e eu ainda não havia almoçado.

Mas nada disso importava, pois era para ser um dia normal de trabalho em um posto de saúde do interior com uma lista cheia de pacientes e suas peculiaridades...mas na minha profissão sempre lido com os indivíduos em situação de fragilidade e é justamente nesse processo de saúde-doença que a natureza humana parece ser mais sincera e muitas vezes fortalecida. E essa é a minha luz de esperança na humanidade desacreditada pela falta de amor, tolerância e paz.

Possuir então dias normais de trabalho é o que contribui para manter minha felicidade de ter feito a escolha certa da união entre coração e profissão.

Mas a insegurança do caos global e a influência de nossas convivências nos deixa em estado de insatisfação crônica e de imobilidade diante do que precisa se mudar.

Hoje meu coração se encheu de alegria em poder ajudar a minha paciente. Ela pode não iniciar hoje sua revolução pessoal, mas sei que despertei nela a vontade dela esquecida de mudar.

Porque se o cotidiano não nos agrada, temos que pegar um deles - pensamento, sentimento ou atitude - e fazer que nem Dona Fulana: deixar de leseira.