Lições do tempo

Mas a vontade de trabalhar era tanta, mas tanta... e eu só tinha 14 anos...

Bem, naquele tempo era assim: o pai falava e a gente obedecia. Pronto. Mas eu queria – e precisava – trabalhar.

De família humilde e com eternos problemas financeiros, um emprego – poderia ser no balcão da farmácia , na papelaria, no consultório médico como secretária, qualquer coisa seria bem-vinda.

Eu teria que, primeiramente, lutar contra a minha timidez , o meu pouco saber, as limitações da idade, a inexperiência, mas eu buscava identidade... e trabalho.

E nada convencia o meu pai. Fui aprendendo a fica calada, sabendo que ele jamais me daria razão, não compreenderia o meu desejo profundo de ajudar nas despesas da casa, ao mesmo tempo, ser dona dos meus passos. Eu não seria – e não fui – ouvida. E eu ia me sentindo como uma alma penada no purgatório, querendo que me ouvissem... e nada.

E eu tinha uma vontade latejante e acabei chegando a uma conclusão triste e fatalista: quando eu fizer dezoito anos eu vou sair e procurar um emprego, o pai não vai poder falar mais nada. Eu vou trabalhar!

Era muito importante sonhar com isso. Devagar eu ia me fortalecendo, abrindo mais os olhos para compreender o funcionamento do mundo, me esforçando imensamente para decifrar enigmas que uma jovem criada dentro de casa sofria em simplesmente tentar.

Chegou o dia: pronto! Fiz dezoito anos. Em seguida, fiz o vestibular prá História – também contra a vontade do pai, e arrumei o meu primeiro emprego no Anglo – o mais conceituado pré-vestibular daquele tempo.

Coloquei o pé na vida, mas com muito medo. Mas não cedi a esse sentimento mórbido, nauseante, carrancudo. Fui enfrentando, tropeçando numa timidez doentia, apanhando da vida, suando frio, mas fui.

O meu desejo era esse: ser cidadã num tempo em que falar em cidadania era caso de subversão. Ler e discutir “Morte e Vida Severina” era necessário para se compreender muito da alma do país, mas sacrilégio para os donos do poder. Adorava ouvir o Chico Buarque mas me faltava recurso para comprar algum LP. E quanto comprava, era um troféu e um cuidado extremo para que o disco não riscasse.

Com o meu parco salário eu ajudava nas despesas da casa, andava a pé para não gastar com a condução. Saía da cidade universitária com o dedão esticado pedindo carona e quando o motorista dizia que ia para o Cambuci, eu só pensava: “hoje eu consigo economizar dois passes”.

As dificuldades tão grandes nos faziam de ombros fortes e pés mais largos para aguentarmos o peso de outras provações pela vida afora ( ou seriam provocações?).

Mas a verdade é que eu só queria estudar, trabalhar e viver; mas mesmo assim tinha que haver espera. Espera de quê? Até hoje não sei. Mas como era duro ser mulher naquele tempo! Claro que antes, muitíssimo pior. Para mim, o verbo esperar é sinônimo de atraso, que me lembra uma obediência forçada a não sei quê. É um verbo que me enerva, me dá calafrios e eu nunca soube conjugar.

E a maior vitória que pode existir é a superação! Principalmente a superação do medo num terreno tão hostil como era aquela São Paulo dos anos 70, com uma ditadura exalando podridão aos quatro ventos, crise econômica que nos arrastava ladeira abaixo todos os dias, incansavelmente, e o pai mandando e não querendo ouvir nem um pouco dos nossos sonhos .

Superar obstáculos tão firmes é uma forma de oração, carregada de doce melodia. Chegar à meia idade e dizer: CHEGUEI é uma das bênçãos mais azuis que pode cair dos céus.

E o melhor de tudo: sem reclamação. O desejo de mover o mundo, o nosso mundo, definiu a estrada de pedra onde os sabiás nunca deixaram de cantar no percurso da nossa longa caminhada.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 26/05/2014
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