Comida de boteco

Nas inúmeras tentativas de conhecer o mundo, muitas vezes eu fiquei imaginado como seria viver. Viver sem censuras, sem proibições, sem medo ou recalques e com menos limitações impostas pela timidez e pela falta de dinheiro.

Muitas vezes o meu irmão falava sobre os botecos da cidade e contava situações engraçadas, de uma forma despretensiosa e sem stress. Falava dos botecos do Cambuci, do Bixiga, bairros que sempre me encantaram e que entraram na minha vida e participaram dos meus sonhos. Tenho esses espaços cravados no DNA, com suas histórias, personagens, memórias e construções de vida.

Um dia eu cheguei até a perguntar para ele o “que se poderia falar num boteco”. Ele disse: “qualquer coisa”.

E eu ficava imaginando o que seria “falar qualquer coisa” e ser ouvida.

Na época eu lia um livro sobre a Reforma agrária na Nicarágua e imaginei que esse não seria um assunto adequado. Era comum eu ler vários livros ao mesmo tempo. Eu lia outro sobre a exploração do trabalhador escravo na época da monocultura do açúcar. Título do livro: Doce inferno.

Imaginei também que esse não seria um bom tema.

Piadas eu quase não conhecia. Que casos eu poderia contar e ser participativa de um

encontro num boteco?

Eu me imaginava ali, no Bixiga, sorridente e com assuntos apropriados para o espaço, descontraída e com as minhas conhecidas roupas casuais, confortáveis e nada de requinte. Eu ia visualizando amizades, abraços e depois aquelas despedidas calorosas com a espera de uma outra vez no mesmo bate canal.

Como não tive o privilégio de viver uma juventude com as melhores energias, resolvi improvisar, me fazer presente , mesmo no imaginário, como seria viver um momento jovem sem ser ridícula em meio aos meus cabelos grisalhos de quem já viveu mais de meio século.

Indo às compras num sábado, li um anúncio de um curso de comida de boteco num famoso supermercado de Florianópolis. Fiz a minha inscrição e fiquei aguardando o dia da aula. Cheguei até a mudar o horário de uma outra atividade para que eu não perdesse o evento, para mim, especial. Tive medo que faltasse luz, ocorresse algum imprevisto... tal era a expectativa, mas deu tudo certo.

Em lá chegando, fui direto perguntar para uma atendente onde era o local das aulas.

A atendente, muito gentil e prestativa, era minha ex-aluna. Conversamos um pouco, nos abraçamos respeitosamente. Ela ainda teceu alguns elogios às minhas aulas... até que eu perguntei:

- “Luana, é o local do curso?”

- “ Que curso, professora?”

-“O de comida de boteco.”

Ela, momentaneamente, ficou paralisada, atônita, me olhando fixamente. Parecia o William Bonner quando encara a câmera para dar uma notícia de destaque, realçando as sobrancelhas e olhando sério.

Refeita do susto, ergueu o indicador e disse: “é só subir as escadas, no fim do corredor”.

Caramba: passei a vida toda querendo entrar num boteco, viver plenamente a minha juventude com alegria e satisfação, comer aquela comidinha, participar de um momento longe das responsabilidades diárias, adultas e urgentes. Quando consigo fazer um curso, a garota ainda me olha desse jeito, decepcionada, desolada e com cara de interrogação.

Não tem jeito: em vida passada eu devo ter feito Sócrates tomar cicuta. Tenho certeza de que fui eu quem deu o cálice prá ele, lá no meio de Atenas.

Mas que eu aprendi, aprendi. E hoje faço com frequência umas comidas dessas em casa e me deleito. Só prá fazer desaforo...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 29/05/2014
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