Atalhos e retalhos

O barulho da chuva ultrapassa os muros dos individualistas, centrados e encerrados em seu universo particular. O mundo silenciado pelos fones de ouvido, que insistem em gritar sons e letras e calar pensamentos. Os passos contados, calculados. Pé direito, pé esquerdo, parada obrigatória para atravessar as ruas e se movimentar entre outros estranhos, reflexos de nós mesmos. Após a travessia barulhenta dos carros, recomeça a caminhada para lugar nenhum. A corrida contra o tempo, que vai de encontro à vida sonhada.

A educação prevalece em certos momentos. Poucos, ínfimos e cada vez mais escassos. Desejos de um bom dia ao próximo se esvaem antes de serem verbalizados. Todos parecem ocupados com seus próprios anseios, procuras e narrativas. A busca pelo que não pode ser perfeitamente explicado. Por sensações que preencham o vazio interior. Por vida e não somente pela existência, na intenção de contrariar Oscar Wilde, que pertinentemente afirmava: “viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”.

Olhares perdidos e confusos se espalham pelas ruas da cidade. Tentativas de compreender o outro, que é oculto, introspectivo e desconfiado. “Por que estão me olhando?” Questionamentos impronunciáveis originados do medo por não saber o que o observador busca em nós. Dúvidas, constrangimentos. Bombardeios de notícias trágicas causam pavor. Caos no cotidiano. Até quando serei poupado e permanecerei nesta terra de ninguém?

Papéis jogados no chão. “Devolvemos o seu amor em três dias”, “Você é vítima de inveja? Resolvemos seu problema!” afirmam frases toscas em folhas mal desenhadas e cheias de promessas vãs. Pedidos educados de desculpas ao recusá-las por acreditar que nada será solucionado com ações sobrenaturais. Passos mais rápidos para chegar a um local seguro que nos distancie do tumulto mundano em que somos obrigados a viver. Mas, a eles, jamais chegamos.

Animais caminham e fuçam o lixo mais próximo à procura de alimentos. O vento sopra lentamente, alvoroçando cabelos, roupas, árvores. Crianças gritam e brincam. Adultos se esbarram. Outros sorriem. Idosos observam com seus olhos vagarosos. A assustadora passagem do tempo. Deveria ser dada a opção de pará-lo, de não sentir seus efeitos sobre nossos corpos cansados e envoltos em uma armadura capaz de suportar o peso que somos obrigados a carregar. Todas as dores vividas, revividas e remoídas. Empurradas para baixo de um tapete invisível, no qual esbarraremos quando menos esperarmos. É preciso revisitá-las para seguirmos em frente. Mas, por ora, elas serão armazenadas e tratadas como meras lembranças.

Incutiram nas cabeças ingênuas a ideia de felicidade. Felicidade plena, pura e alcançável. E, atrás dela, muitos correm diariamente. “O ser humano nasceu para ser feliz” são palavras que ecoam e atormentam vidas. Tudo para atingir esse ideal inatingível. Formação de gerações frustradas pela incapacidade de mantê-la e disseminá-la. Um insight retira o véu da ilusão e a felicidade idealizada é dissolvida na nua e crua realidade. O encontro decepcionante com a vida como ela, de fato, é assusta a todos. Para suportá-la, é necessário calar a voz interior e suas verdades, que, insistentemente, relembram os descaminhos.

O dia, preenchido por compromissos inadiáveis, acaba como outro qualquer. Despertar, levantar, trabalhar, comer, dormir. O eterno ciclo se encerra ao anoitecer para ser reprisado ao amanhecer. Menos um dia de existência. Mais um de cobranças. O repouso noturno traz dúvidas e incertezas, mas o cansaço não permite que elas incomodem por muito tempo. É preciso ignorá-las para fingir conformismo, emanar falsa leveza e manter a rotina. Tais quais cães de Pavlov, ao som do despertador, repetimos movimentos a que estamos inconscientemente condicionados, deixando as mudanças e recomeços para depois. Para um amanhã que nunca chegará.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 19/06/2014
Reeditado em 01/07/2014
Código do texto: T4851393
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