ROSÁRIO DEU O TROCO

Era uma mulher direita. Andava na linha. Moral religiosa. Não desapontava o marido que não lhe dava o mesmo. O safado teve descoberto por ela a razão das suas ausências em casa em seguidos finais de semana acobertadas pela desculpa de se tratar de trabalho extra. Prosperariam os dois com a grana adicional. Relação fora do casamento era a verdade. O puritanismo dela poderia aguentar qualquer coisa, menos adultério. Apesar de o cristianismo não ser correto com ela, pois os próprios patriarcas bíblicos dão margem para esse tipo de vida marital. Como as pessoas são levadas a não notarem isso, a fim de viverem a vida a dois como a conveniente, ela não o perdoou e pediu o divórcio. Outra coisa que a Igreja condena, mas suporta mesmo entrando dinheiro só para os cartórios. Não cercaram tudo quando construíram os dogmas, agora é tarde.

E lá se foram treze anos de casamento no civil e no religioso da Igreja Batista. Um filho ficou disso. Estava ele com doze anos quando os pais se separaram. Menino dócil e estudioso que começara logo a sentir a transformação que o filho de pais separados por infidelidade de uma das partes sofre.

Ela, então, precisava trabalhar. O calhorda do marido, com a proteção do judiciário brasileiro, só tem que mandar para ela cem reais para as contas do filho. Ele alegou que era o que ele podia pagar. Cafajeste, gasta à toa com a ex-amante que se tornou esposa muito mais do que isso. E foi ele que deixou a ex-mulher na situação que se configurou para ela: sem especializar em qualquer profissão. Ele não a deixava trabalhar, dizia que lugar de mulher é dentro de casa, e ela, boba, acatava as diretivas do então marido.

Quando a fome aperta, se tem bocas importantes para alimentar e ainda por cima as contas de água, luz e aluguel para quitar, não sobra outra opção para parar em pé e se manter na honestidade que não ir à luta e encarar qualquer oportunidade de trabalho. Os cem reais que o irresponsável e desumano pai do filho dela a entrega por imposição da Lei precisa ser inteirado. E muito.

Eram nove e trinta e cinco da noite de uma segunda-feira serena quando ela bateu o primeiro ponto da sua vida. Camareira de motel. Motel de luxo. Não teria que ajeitar as coisas em quarto alugado para pé rapado que caça se deitar com uma puta de rua e ter que aguentar choramengos ou presenciar situações bizarras durante o seu atendimento, além de muita sujeira desnecessária. Foi o que ela conseguiu encontrar de emprego. Mulher bonita ainda. Loira dos olhos verdes. Corpo garboso, quase em plena forma. A beleza imaginada para si por qualquer mulher da idade dela, quarenta anos, ela esbanjava. Tinha só aquele gênio forte pedidor de respeito que toda retirante do interior de Minas reserva ao seu eu e faz questão de mostrar que tem para aquele que pisar fora da risca. Ainda mais sendo assim, religiosa e de criação rígida.

Normalmente a tarefa era entrar nos quartos destinados aos amantes, fazer o serviço e sair sem olhar para ninguém no itinerário. Levava bandeja com comes, bebes e camisinhas e passava pela portinhola rotativa. Com o quarto vazio: arrumava a cama, conferia o frigobar, esvaziava a cesta do banheiro. Recolhia, com luvas, preservativos gosmentos espalhados no cômodo. Uma rotina semiautomática.

Todos nós somos produtos do meio no qual vivemos. É, claro, cada programação que entra em nosso chip cerebral precisa ser treinada até que se expresse em nosso ser e passe a fazer parte do nosso ego, que vão chamar de: nosso caráter. E estando naquela de absorver as propriedades do meio onde trabalhava e passava cerca de nove horas do seu dia conflitando com o que recebia do resto de seu convívio diário, tirando as horas dormidas e o dia de descanso remunerado, a maior participação em sua vida dos acontecimentos do meio profano demais que sugere ser um motel iria imperar, em algum momento, na formação da personalidade da camareira Rosário. O moralismo mais forte, o que vinha da igreja, sucumbiria facilmente perante ao que passariam a ser as poucas horas de educação religiosa em comparação com as de educação da vida. A Rosário já começava a dar asas para a sua imaginação. Pensava besteira, usava de malícia nas suas conversas, se masturbava.

Dia de semana. Terça-feira. Onze da noite. Um homem entrou sozinho no quarto 301 e ficou acomodado. Esperava ansiosamente a chegada da amante, que deixaria o expediente de trabalho às dez da noite no shopping em frente ao Ágatha. Ele estava no quarto desde as dez e meia. Reservara por telefone.

Mais cinco minutos. Assistia o canal 3. O celular tocou quando ele se fantasiava. Todo preparado para a transa que não iria mais acontecer. Ana Cristina ligara dizendo que em sua casa ocorreu de sua mãe passar mal e ter que ser hospitalizada. Ela deixou o recado para ele se arrumar e ir se encontrar com ela no Alberto Cavalcanti. Teria ele que atravessar a cidade. Furioso, acionou a portaria pelo telefone interno e solicitou a conta.

"Houve consumo, senhor?", ouviu pelo telefone. "Porra, tem mais essa! Vou ter que pagar aqui um saco com trezentos gramas de salgadinho e duas latas com quinhentos miligramas de cerveja." A indelicadeza ao dar a resposta saiu por causa da fúria, sem que ele percebesse.

Rosário foi lhe levar o bilhete contendo o consumo. Não usava luvas, pois ainda não era hora. Colocou num lado da portinhola a bandeja, tocou o sino e rodou o aparato. Seu Jair já aguardava e bem efêmero viu as mãos pintadas da agora vaidosa camareira. Um tesão despertou-lhe.

É inusitado quando uma rotina se modifica. Seu Jair, curto e grosso, perguntou pela portinhola se a camareira poderia pegar com ele o cartão de crédito pela porta de entrada do quarto. Ele disse que sabia das regras, mas que ela não teria problemas, pois ele estava devidamente vestido e o quarto não fora usado para fins libidinosos. Ela, mesmo sabendo que ainda assim era proibido obedecer, se sentindo tentada e curiosa para saber como era o homem que quis ver como ela era – considerou que era o que parecia ser a explicação – acatou o pedido.

Pra que? Deu de cara com um grandalhão charmoso, maduro e que despertou-lhe a libido mesmo estando ele levemente vestido. Talvez a expectativa frustrada de sexo dele fosse a causa de tanto feromônio saindo de toda parte de seu corpo.

Ele foi honesto e cumpriu com a palavra: entregou para Rosário o cartão de crédito. Mas ela, percebendo a frustração do belo homem à sua frente, ousou perguntar-lhe com seu jeito forte de mulher do interior de Minas a razão de ele ter que deixar o quarto sem tê-lo usado para o devido fim. E ele, cordialmente, é claro, respondeu que não era um homem de sorte por não ter uma mulher como ela, a camareira, que viesse se apresentar a ele mesmo estando impossibilitada por motivo de força maior. Vislumbrou-lhe os olhos e achou que se acalmaria. Agradeceu a jovem senhora pelo fato.

É, mas já que era para burlar regras e que talvez o ensejo fosse descoberto e a camareira pudesse perder seu emprego por causa da quebra de decoro, Rosário, sem sentir o cheiro do sexo desde que o ex-marido fora embora de casa, perguntou ao homem se poderia ajudá-lo com mais alguma coisa. Foi para ele um convite para se desfrutar da beleza singular e do jeito cativador da que lhe pareceu fogosa mulher. Ele soube manejar a situação e em pouco tempo estava nu com ela na cama desfeita que ela mesma arrumaria logo mais. O puritanismo de Rosário foi para o saco de vez. Ela só não aceitou dinheiro dele para também não ir embora sua honra.

O desfrute durou menos do que uma hora. Juntos eles conseguiram construir uma desculpa para justificar a ausência da camareira, que trabalhava junto com uma amiga que lhe rendeu em algumas atividades, na surdina, durante o período de deleite e com isso a mulher segurou seu emprego. Jair também pagou o excedente. Fazia parte da desculpa arranjada.

Foi fácil para Rosário conseguir a condescendência da amiga de trabalho, a mesma já estava nessa de servir de substituta de amantes desolados havia tempo. Tinha homem que ia para o Ágatha só para se deitar com ela. É claro que a administração sabia. Vão deixar de faturar e penalizar a menina? Porém, Rosário não entrou nessa, foi só essa vez. Quer dizer, entrar ela entrou, só que com um único cliente.

Sem ela pedir, ele lhe valeu como marido. De vez em quando a visitava em casa, passeavam juntos, ele dava a ela alguns presentes. O menino dela também saiu ganhando. Quanto a Ana Cristina, que não estava com a mãe moribunda nada e ainda queria desviar o noivo para outro lado da cidade e poder usar o quarto que fora reservado, teve que lidar com um flagra. Dela, obviamente. Seu Jair era difícil de ser surpreendido sem conseguir ajeitar uma bela desculpa para ele se esquivar. E ainda encontrou na camareira o álibi ideal. Foi só a noiva que levou a pior por confiar demais na operação e não ter ligado confirmando a prontidão do ex-noivo em seguir para o Alberto Cavalcanti, onde a mãe dela cuidaria de dizer para ele que ela ficou de voltar para buscá-la e que se ele pudesse fazer a vez dela seria a ela, a sogra, bastante simpático. O "onde Ana Cristina foi" também seria respondido com categoria.

A gente não percebe, mas a vida conjugal é um sistema de pagar com a mesma moeda que nunca falha. É claro que Rosário não deu troco no ex-marido. Essa era a missão da atual esposa dele. Mas um gostinho de desforra ela teve quando foi se encontrar com ele, toda bonitona e exalando sedução por causa da nova mentalidade a cerca da vida, se libertou da escravidão religiosa, para lhe dizer que não precisava mais da miséria que ele lhe dava e que ele podia enfiar os cem reais no traseiro. Completou dizendo que conheceu um homem finalmente. Se tornara irônica também. Bem mais do que boca suja. Pobre vigarista ele!