A CRENTE E O ANARQUISTA

"Clap, clap, clap". Palmas na minha porta. Domingão. Nove da manhã. Trabalhei toda a noite anterior. Muita insistência por parte de quem me importunava. Fui ver o que era.

– Bom dia, senhor! Sou da igreja Testemunhas de Jeová, posso ler um trecho da Bíblia para o senhor?

Bem, "O Senhor está no céu e ele deve saber o que está escrito nesse livro de cor e salteado se foi ele mesmo quem escreveu". Deu vontade de falar isso para ela. A beleza singela da morena de cabelo alisado batendo no ombro, de olhar suplicante e uma boa distribuição de pouco mais de cinquenta quilos por provavelmente um metro e sessenta e alguma coisa de altura é que me impediu de falar. Bateu uma vontade de ser atrevido e tirar a jovem de talvez pouco além de vinte anos de idade e sem anel dedo-duro em quaisquer de seus dedos do caminho espiritual e fazê-la encarar minha cama, que jazia bem perto da gente. Eu iria à forra por ela ter me despertado do sono antes de o despertador soar.

Como eu sempre ouvi falar que esse pessoal é osso duro de roer quando invade o seu portão querendo que querendo ler um trecho da Bíblia e quem sabe te vender alguma coisa, achei melhor deixar ela ler logo. Mas fiz questão de escolher o trecho. Cânticos, 4, 7. Ela sorriu olhando para baixo e disse que o trecho era pequeno demais. Pensou só que eu quisesse me livrar logo dela. Pensou errado.

Depois disso, como eu já suspeitava, veio a seção comercial da oratória dela. Primeiro foi a revistinha semanal que a gráfica da igreja produz. "Não". Disse eu. É que eu não vou ler e ultimamente qualquer dois reais está me fazendo falta. Ela que culpe o Governo por perder venda. "Pelo menos fica com essa prece em folheto: Um real apenas", me ofereceu aqueles papeiszinhos com imagem de oliveira ou de pomba sob o céu com uma oração lamuriosa de um lado e do outro um convite com endereço para ir em um culto. Senti bastante, mas falei para a doce evangélica que masoquismo não é a minha praia.

Uma ventania do caramba acontecia. Meninos empinavam pipa sobre lajes. O bairro estava com um jeito de domingo mórbido. Desses que estimula a ficar em casa e chamar os amigos para queimar carne para ver se o melhora. Podia ser que eu o visse assim por não contar de acordar aquela hora. Sofri um prejuízo de sessenta minutos pelo menos. Como a visita inesperada à minha porta não podia saber o que eu pensava sobre aquele dia, ela fez sua próxima proposta.

– Pelo menos me responda algumas perguntas da pesquisa que tenho que fazer para a próxima edição da revista da Igreja?

– Bem... se for rápido! Respondi isso. Mas não importei muito se fosse demorar. Já estava tentando amadurecer a ideia de levar a protestante para dentro da minha casa. Seduzir ela com o tanto que conheço da Bíblia. Repetir "Jesus salva" umas quinhentas vezes e por fim... Deixa para lá!

– O senhor lê jornal?

– Não!

Respondi seco. Realmente havia mais de três anos que eu não pegava num exemplar de jornal nem para embrulhar banana. Ah, qual é, se já sei que as notícias são maquiadas, que são empresas os veículos de comunicação e que precisam faturar para existir e que esse faturamento vem de quem paga para noticiar o que eles querem que seja noticiado ou que o leitor aceite, para que vou me importar com isso com tanta coisa que eu preciso fazer?

– Ouve rádio ou vê televisão?

– Piorou. Não dou atenção mesmo!

E realmente não dou.

– Você se incomoda com carros passando na rua com o volume do som bem alto e com as letras das músicas incitando violência, fazendo apologia ao crime e às drogas, banalizando o sexo e causando insegurança, perturbação e problemas auriculares para as pessoas?

– E como me incomodo! Eu gostaria que tomassem providências contra isso, mas parece que esse pessoal trabalha para o Governo. O Governo é que quer essa desordem, essa falta de harmonia. Eles chamam isso de democracia, sabia?

A moça deu uma risadinha. Ela ficou feliz por ter enfim conseguido arrancar de minha parte algo que se parecesse com um "sim".

– Muito obrigada! Eu já vou indo.

Ela já saía quando eu a pedi que retornasse. Eu quis saber o que ela tinha para discorrer caso eu respondesse que consumia notícia da imprensa padrão. Eu disse que em outras épocas eu fazia isso e que eu acreditava que nada havia mudado.

– Na imprensa, quando você dava atenção para ela – dizia a moça –, era menor ou maior o número de notícias negativas que você via?

– Com toda certeza: maior. Bem maior. Eles faziam questão que fosse. Até fabricavam umas tragédias se não tivessem nada natural para mostrar.

– E você acha que a realidade pode ser moldada para a que é estampada pela imprensa estando as pessoas tendo contato com tanta infelicidade e condicionada a achar, o tempo todo, intensamente, que o mundo é como elas veem nas notícias?

– Acho que sim. Qualquer um pode perceber isso!

– O problema é que as pessoas não têm oportunidade de ver o mundo de outro jeito porque estão dominadas pela mídia. E a mídia não apresenta meios para elas virem o mundo mais positivamente e juntas moldarem a realidade para melhor.

– É, fere os interesses da mídia. É muito mais comercial o mundo conturbado, cheio de ocasiões para as pessoas gastarem dinheiro ou terem que se submeter a outras para quitar dívidas ou conseguir coisas. Pessimismo, insegurança, essas coisas causam stress e enfraquecem o sistema imunológico do ser humano, acidificam o corpo, fica-se doente de tudo quanto é coisa. Úlceras, diabetes, fragilidade mental. O que não falta é gente que lucra com tratamento de feridos a bala ou de acidentes de trânsito, de stress; O que não falta é quem explora a fragilidade cerebral do indivíduo, a fim de conquistar votos ou outras adesões. E ainda tem os que exploram os mercados de velórios, de enterros, de atestados de óbito, de empréstimo de dinheiro...

Brinquei um pouquinho no final da resposta que dei para a jovem de blusa cacharrel marrom escuro e saia de brim que ia até o joelho. As sandálias simples dela se revezavam uma sobre a outra enquanto ela escrevia desajeitadamente na folha que tirara da bolsa à tiracolo e colocara sobre a revista que tentara me vender.

– Verdade! Noutra edição eles vão falar sobre o consumismo e sobre se ter que pagar por tudo no mundo. Fico feliz por ter encontrado alguém que não é vítima das armadilhas dos dirigentes da sociedade. Se um dia você voltar a dar atenção para a imprensa, saiba que nossa revista tenta levar a quem a lê apenas as possibilidades de ver o mundo com otimismo, mesmo quando o que noticiamos é uma tragédia real. Quero agradecer, tenho que visitar mais gente por aí. Obrigada novamente!

Às vezes, um fiel de uma agremiação pode ensinar muito a um vendedor tarimbado, desses que ficam atrás de balcões. Não deixei que ela se fosse sem que eu comprasse um dos exemplares que ela carregava na bolsa à tiracolo. Uai, a qualidade da pesquisa que ela fazia denotava uma revista de qualidade, independente e preocupada com questões sociais de suma importância. Tal qual todo veículo de comunicação devesse ser. De quebra ainda comprei o folheto. Mas não era por causa da prece e sim por causa do endereço da casa de oração. Ora, eu não havia desistido de tentar levar a cativante garota para a minha casa. Ainda que isso me custasse um anel no dedo anular esquerdo.

"Você é toda linda, minha querida;

em você não há defeito algum."

Cânticos 4:7