O caso da cisterna

Sem água na sua caixa há mais de uma semana por causa do racionamento, Ramon decide furar uma cisterna no quintal de sua casa. Ele sabe que ali tem água, porque na época da construção os pedreiros acharam – “e muita, seu Ramon, para dar e vender”, disseram. Só que furar cisterna é proibido, e Ramon está com medo de que seus pais e sogros, e até sua mulher, que adora conversar, deem com a língua nos dentes, atraindo para si o terrível Tribunal da Inquisição Ambiental da cidade, que certamente o condenaria à prisão perpétua ou até mesmo à morte na fogueira.

Mesmo assim ele resolve arriscar e fura a dita cuja. Uma beleza! Os pedreiros tinham razão. É água que não acaba mais.

Seu sogro assiste à perfuração, interessado, dando um palpite aqui, outro ali. Seu pai também, juntamente com a mãe, a sogra, a esposa e os filhos, que passam para lá e para cá o tempo todo, ansiosos e felizes. Todos juram manter o bico calado. Segredo absoluto.

No entanto, o sogro, admirado com a esperteza de Ramon, deixa escapulir para um vizinho curioso a informação de que na casa do genro não faltará mais água. O vizinho pergunta por que, e o sogro responde, sussurrando: “Ele furou uma cisterna... Mas não conte para ninguém. É segredo”. Do outro lado da cidade, a mesma coisa: o pai, orgulhoso do filho, também deixa escapar para um vizinho que Ramon acaba de furar uma cisterna das boas em seu quintal, mas pede segredo, “pelo amor de Deus!”.

Nem meia hora após o pai ter pronunciado “Deus” no seu pedido de segredo ao vizinho, duas viaturas do Tribunal Ambiental e uma do Conselho Tutelar estacionam em frente à casa de Ramon. Delas descem várias autoridades munidas de um mandado de busca e apreensão e cinco exemplares do novo código ambiental comentado. A chefa da equipe é uma morena clara, sardenta, nem jovem nem velha, de cara amarrada, membros socados e quadril largo. Entra triunfante na casa de Ramon e vai direto ao local da cisterna, como se já conhecesse o ambiente. Quando detecta o crime, grita, tremendo de prazer: “Peguem-no, peguem-no!”, o que imediatamente aciona dois marmanjos de camisa verde, membros da equipe, que agarram Ramon pelas costas e o derrubam no chão, prendendo seus punhos com um par de algemas verdes.

Ramon grita, indignado, exigindo seus direitos, ao que a mulher responde com uma longa gargalhada de bruxa, daquelas que só se ouvem nos desenhos clássicos de Walt Disney: HAHAHAHAHAHAHA! “Que direitos?”, ela pergunta. “O delito que você cometeu não lhe dá nenhum direito, porque é hediondo. Trata-se de um crime contra a ordem cósmica do universo, contra tudo que existe aqui e além de todas as fronteiras estelares, de todas as galáxias: o pior de todos os crimes, o mais abominável, o mais...”, e rangendo os dentes afiados, ela pega um punhado de barro no chão e joga-o com fúria no rosto de Ramon, que se cala, por precaução.

Sua esposa e seus filhos são levados amarrados e amordaçados para o carro do Conselho Tutelar. Ramon é jogado no porta-malas de um dos veículos da Inquisição, o maior deles, um Opala verde limão. Na hora da confusão, seu sogro chega tentando conversar, pedindo “calma, calma”, mas é contido por um dos marmanjos de verde e amarrado num poste. De dentro do porta-malas Ramon ouve a bruxa dizer: “Seus filhos serão levados para um abrigo do governo, onde permanecerão até completarem trinta anos; sua esposa vai para uma prisão ambiental feminina no arquipélago de Fernando de Noronha, onde permanecerá vinte e cinco anos experimentando os limites extremos do tédio; e você, meu jovem, você... HAHAHAHAHAHAHA!...”.

Foi aí que Ramon acordou, suando frio, em pânico. Era um pesadelo. Olhou o relógio. Três da madrugada. Foi ao quintal. Nenhuma cisterna. Abriu a torneira. Nenhuma gota de água. “Ainda bem”, suspirou Ramon, aliviado. Tentou dormir de novo, mas não conseguiu. Foi à cozinha e tomou dez gotas de rivotril.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 01/07/2014
Código do texto: T4866361
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