O MISTO DE SEU ZEZINHO

Amanheci nostálgico. Também pudera! Na noite anterior eu estivera ouvindo Amália Rodrigues e seus fados maravilhosos, num CD vindo diretamente da boa terrinha, e que trazia as melhores canções da grande intérprete portuguesa. Fiquei emocionado ao ouvir “Aimoraria” e seus versos de saudade e paixão: “Aimoraria, mora na Rua das Palmas, onde eu um dia, deixei a minha alma...”

Pois é. A música tem esse dom de nos transportar de universo para universos, sem precisarmos sair do lugar. Basta apenas fecharmos os olhos e relembrarmos os bons momentos, quase todos eles feitos acompanhados de uma boa música, ou, na pior das hipóteses, de um som que não estava lá por ter sido colocado para fundo musical, mas que, ao se ouvir depois dos anos passados, nos faz lembrar exatamente o momento vivido.

E a música de Amália Rodrigues me fez lembrar-se dos tempos que eu, ainda criança, me deslocava para a vizinha cidade de Assu, em cima de um “Misto” – metade ônibus metade caminhão de carga – de Seu Zezinho, para ir deixar dinheiro para a minha avó. Era uma aventura emocionante para um garoto de 10 anos de idade. Era como desbravar o interior, assim como fizeram os bandeirantes na colonização da nossa terra.

Era levado por meu inesquecível pai – que Deus o tenha – até a ponte velha, onde ficava esperando aparecer o “Misto” de Seu Zezinho, que fazia a ligação entre as duas cidades. O percurso era em estrada de barro, algumas vezes por entre veredas, pequenos serrotes e as paradas eram constantes.

O “Misto” levava de tudo: desde os sacos de farinha, rapadura, feijão, arroz, fardos de carne de charques, fogões, geladeiras, bicicletas, camas, armários, até os próprios animais, entre os mais comuns, bodes, cabras e porcos. Saíamos de Mossoró, normalmente no período da tarde e devido aos obstáculos naturais da estrada e as paradas para apanhar ou descer passageiros, a viagem era prolongada por mais de 2 horas, pois também tinha a parada obrigatória em Zé da Volta, para se comer o famoso doce de lata com queijo de coalho.

Eu era conhecido de Seu Zezinho, ou melhor, a minha família era conhecida do mesmo, por isso eu tinha a sua atenção e o seu cuidado, deixando-me sempre, quando chegava a Assu, na porta da casa da minha avó. Era uma rotina que eu gostava de fazer. Era uma vez por mês. E a volta se dava quase que da mesma forma. Minha avó me acordava cedinho, ainda escuro, fazia o café em fogão de barro com labaredas acesas por pedaços de lenhas assopradas por um pedaço de papelão, coado em pano grosso de saco de açúcar e servido acompanhado de um beiju saboroso que só ela sabia fazer. Delicioso!

Depois, as despedidas, sendo dados, antes, os avisos costumeiros de cuidado, não vá se “empalhar” no meio da rua e lembranças para o filho protetor. Da casa dela até onde ficava o “Misto” que me levaria de volta, era uma distância considerável, tirada em um pequeno “trote”, por dois motivos: primeiro, o medo de andar sozinho no meio da rua sem a luz do dia e, segundo, medo de estar atrasado e perder a condução que me levaria de volta para juntos dos meus pais.

Nunca aconteceu nada. Nunca perdi o “Misto” e nunca ninguém me abordou em meu caminho até ele. Eram outros tempos. A volta era sempre a esperança do retorno e quando descia na mesma ponte que era apanhado, o sentimento de dever cumprido; de saber que tinha levado algo precioso, caríssimo e que daria para passar um mês inteiro. Meu coração dava pulos de alegria e me fazia herói de mais uma aventura bem sucedida na nave do Seu Zezinho.

Hoje não existem mais “Mistos”, foram substituídos pela modernidade das “Bestas”, dos ônibus de dois andares, mas fica a lembrança de quem viveu esse áureo tempo, relembrados toda vez que a nostalgia bate, através de uma bela canção de saudade, reativando os arquivos de um passado inesquecível.


 

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Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 14/05/2007
Reeditado em 06/02/2012
Código do texto: T487080
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