Memórias de um Rio Grande antigo...

Quando envelhecemos, antigas recordações surgem aos poucos, sem avisar, sorrateiras... Aparecem timidamente, saem dos porões da memória, onde se escondiam em algum canto escuro e invadem a nossa mente, se tornam vivas, presentes! Algumas aparecem com uma certa frequência e me levam ao encontro com pessoas, lugares e acontecimentos da minha meninice, vivida na antiga cidade do Rio Grande de São Pedro. Faz muito tempo que saí de lá, mas quando volto, tangido que sou pelas saudades, me sinto tocado profundamente pelas recordações. Era na Praça Tamandaré que as brincadeiras de criança aconteciam depois da "matiné" vespertina. Ali no centro da Praça, repousam os restos mortais do Farroupilha Bento Gonçalves, em um imponente mausoléu de granito, guardado por dois majestosos leões em bronze. Por ser de acesso fácil, o monumento era escalado pela gurizada, que por ali circulava nas ensolaradas tardes de domingo. Lembro que ficava vagamente receoso por brincar sobre o túmulo do caudilho, e com uma sensação estranha de que aquilo era algo que não se deveria fazer.... A Praça tinha também um recanto com balanços, gangorras, um pequeno carrossel, escorregadores e outros brinquedos para as crianças e na entrada do lugar se comprava um doce que não vi em nenhum outro lugar.... Era o "candy", vendido em pequenos pedaços de cor creme e rosa, com a consistência de "puxa-puxa".... Circulavam por lá além das crianças, vendedores de pipoca e amendoim, namorados, desocupados, aposentados e malandros de todos os tipos.... Em um pequeno zoológico,habitavam araras, pavões, tartarugas e pequenos macacos, que eram os meus animais preferidos. No enorme e sinuoso lago da praça, de águas turvas de cor esverdeada, nadavam cisnes, patos e marrecos em grande quantidade. Um pouco mais antiga é a recordação que tenho da estátua do Napoleão, que ficava em uma propriedade a margem da estrada que levava a praia do Cassino e que hoje está na Praça Tamandaré, entre os patos e marrecos que habitam o lago do lugar. A estátua do Corso era importante e eu aguardava ansiosamente a oportunidade de ser o primeiro a ver o personagem quando a família se dirigia para a praia. Não sei de quem foi a ideia de trocar o Napoleão do Senandes para a Praça, e o guri que em mim teimosamente ainda se manifesta, continua achando que o lugar do Imperador é no Senandes, entre a cidade e a praia. Outro lugar das brincadeiras da gurizada era o "Canalete", apelido dado pela população ao Boulevard Major Carlos Pinto, obra de arte construída pelos franceses em tempos idos, com a finalidade de regular o fluxo das águas entre a Lagoa Mangueira e a Lagoa dos Patos e que passou a ser a fronteira simbólica entre a cidade velha e a cidade nova. Recentemente foi recuperado e voltou a ter o antigo brilho, sendo adotado pela população como local de lazer. No Canalete encontra-se o Teatro Municipal, antes Cine Teatro Avenida, que foi o lugar onde pela primeira vez, tive contato com as maravilhas do cinema. Ao lado, estava o Bar do Avenida,ou "Bar do Poderoso", assim chamado pelo fato do seu proprietário,o Deolindo, ser conhecido pela numerosa prole que produziu. Mas o Bar não era conhecido só por isso, mas também pelos sorvetes lá vendidos e pela enorme coleção de latas de azeite de oliva do dono, orgulhosamente exposta em imensas vitrines envidraçadas. No centro da antiga urbe, lembro do Seu Osvaldo, proprietário de um comércio muito apreciado pelas crianças, pois ali era possível encontrar os "gibis", ansiosamente esperados. O Seu Osvaldo atendia com muita paciência a garotada que frequentava a sua loja e era atencioso e solícito com todos. Mais tarde, soube que o dono do lugar era um conceituado médium, um dos fundadores do Hospital Espírita e muito dedicado a caridade,sempre no anonimato. Infelizmente, a loja do Seu Osvaldo sucumbiu ao progresso, dando lugar a outros comércios muito menos interessantes. Adiante, na mesma rua, existia a loja do Seu Valério, a "Esquina da Sorte", onde eram vendidas loterias, material de papelaria e os fantásticos botões para o futebol de mesa e que também foi engolida pelo crescimento urbano... Pelas cercanias, tinha o ambulatório do Enfermeiro Alfredo, conceituado profissional encarregado de "consertar" os estragos que as nossas brincadeiras de criança produziam, manuseando com maestria o mertiolate,mercúrio cromo e esparadrapo. Lembro que o mesmo era casado com uma Senhora chamada Iolanda e que o seu filho, o Ricardo, era um exímio músico que está até hoje em atividade. A outra Praça do centro onde a garotada brincava, era a Xavier Ferreira, com um majestoso chafariz central e um pequeno lago, onde nadava um belíssimo casal de cisnes de pescoço preto, mais tarde transformados em símbolos da cidade. Por perto, um monumento em homenagem a mãe, um obelisco representando a Liberdade, uma estátua do Pequeno Jornaleiro e um grandioso monumento em bronze e granito glorificando Silva Paes, fundador da Cidade de Rio Grande do São Pedro. Margeavam a Praça o prédio da Alfândega, a Prefeitura, o Mercado Público Municipal, ponto de encontro dos ilhéus das redondezas e dos usuários das lanchas que faziam o trajeto entre Rio Grande e a vizinha São José do Norte, a Banca do Peixe, a Biblioteca Pública, onde em uma pequena sala comecei a minha vida de escolar, sob a firme condução das Professoras Hebe Marsiglia e Iolanda Edon e a Rua Marechal Floriano, onde aconteciam os desfiles estudantis e os festejos de carnaval. A um passo dali, estava o Porto Velho, que começava na Rua Riachuelo, nas proximidades do Mercado e se estendia até a Barroso. Quase no centro da cidade, a Riachelo abrigava um grande número de boates e cabarés, frequentados por malandros, prostitutas, marujos e pescadores, além de algumas poucas casas de comércio . Mais afastado, na Rua Carlos Gomes, onde cresci, estava o Bar do Seu Serafim, pai do Ivo e esposo da Dona Carolina, lusitanos que um dia vieram para o Brasil tentar a sorte como tantos outros e que aqui construíram as suas vidas. Era o lugar de reunião da colônia portuguesa da cidade, que acontecia invariavelmente as quintas feiras, dia de feira livre na Carlos Gomes. O vinho tinto era generosamente consumido ao som de fados, que se esparramava para muito além das portas do bar, oriundo de um potente rádio valvulado sintonizado em onda curta, amenizando um pouco as saudades de Portugal que aqueles trabalhadores certamente sentiam. Por ali, morava um outro interessante personagem, também de origem lusitana, o Seu Maia, alvo das frequentes brincadeiras telefônicas da turma, pois a gurizada achava divertido ouvir o pobre homem ficar possesso ao atender os nossos "trotes" e responder aos mesmos com um notável vocabulário "pornofônico"... Ao lado da minha casa, morava e tinha a sua oficina, o Seu Gaspar, também vindo de Portugal, que além de carpinteiro e marceneiro de grande competência, era pessoa de grande educação e um excelente vizinho, tal como a sua esposa, a Dona Porcina. Grandes clássicos de futebol com bola de meia aconteciam entre a turma: de um lado os filhos do Seu Gaspar e de outro, um time formado pelo resto dos guris da quadra, quando os nossos sapatos e dedos eram impiedosamente destroçados pelas pedras do calçamento, para desespero dos pais.... Por perto, havia um estabelecimento comercial diferente, pois o único produto vendido ali eram bananas! O dono era um idoso libanês, tranquilo e afável e que diziam ter feito fortuna como seu singelo comércio. A garotada do bairro costumava vender jornais velhos ao "turco das bananas", como era chamado o Seu Elias. Os jornais eram usados na loja para embrulhar as bananas vendidas e os trocados obtidos serviam para pagar o cinema de domingo. O cabelo da gurizada era "tosado" na barbearia do Rui e do Belmonte, competentes profissionais da tesoura que cuidaram das "melenas" de gerações inteiras. Ali era possível saber de quase tudo o que acontecia na provinciana Rio Grande de São Pedro, pois não eram poucos os fofoqueiros que apareciam para jogar conversa fora todo o santo dia. Papareias genuínos, a fleuma dos dois barbeiros era britânica, pois se limitavam apenas a ouvir, nada comentando. Quase em frente da minha casa, trabalhava o Seu Sílvio, dono da Agência Jacaré, oficina de consertos e venda de bicicletas. Ainda hoje recordo do cheiro penetrante dos pneus novos e das tintas, das bicicletas novas, objetos de desejo da garotada. Outras lembranças surgem de repente das profundezas da memória... O professor Scoot, em seu incessante deambular, que me lembrava vagamente o homem da relatividade.... O Feitiço, animando as ruas com o inseparável megafone e suas extravagantes e coloridas roupagens... O "Fala meu", presente em todos os acontecimentos da cidade... A "furiosa" da brigada.... Os bêbados da vizinhança... O Lúdio e as suas kombis... A Banda do Lemos Jr. .... Lembro dos bondes, veículos enormes, movidos a eletricidade, pintados de verde-amarelo, conduzidos por um motorneiro, o encarregado de fazer a geringonça andar,manipulando manivelas, alavancas e outros misteriosos mecanismos. Umas diversões da gurizada era a perigosa "rabuja", que consistia em pegar clandestinamente uma carona no estribo do bonde e aproveitar o passeio gratuito até ser expulso pelos funcionários do serviço, sujeitos de maus bofes, com certeza cansados de espantar todo o santo dia os indesejados clandestinos infantis. Lembro que de quando em quando, um dos bondes saia dos trilhos, causando transtornos ao transito e e não raramente derrubando postes e paredes. Infelizmente, tornaram-se obsoletos na opinião dos entendidos e foram substituídos pelos ônibus, que atravancam e poluem as estreitas ruas da histórica cidade. Ressurge de um passado ainda mais remoto, a lembrança do trem que ia desde a cidade até a praia do Cassino. O trem era "puxado" por uma "Maria -Fumaça" e é dela que me recordo, quem sabe impressionado que ficava, como toda a criança da época, pela barulheira e pela fumaça negra que o comboio produzia. As recordações me trazem os sons dos apitos das fábricas chamando os operários... o perfume da maresia... do cais do Porto e seus fantasmagóricos navios ali abandonados.... as antigas quermesses estudantis.... das meninas em seus uniformes escolares... dos amigos que se foram... do guri que um dia fui... Assim como chegam, as lembranças aos poucos se vão, voltando lentamente, ao seu lugar, em algum canto escondido da memória.... Que não se percam por lá... e não precisam de permissão para voltar.... São bem-vindas! LCFRivera - Livramento - 2014