Insônia e pernilongos

Seis da tarde.

Uma enorme nuvem de pernilongos paira inquieta sobre o jardim na entrada da minha casa.

“Então é aqui que eles se reúnem em conluio, antes do banquete”, digo para mim, sorrindo. Eu nunca os tinha visto aqui fora, os desgraçadinhos.

Entro. Abraço minha família, que me espera para o jantar.

Lar, enfim.

...

Meia-noite. Não consigo dormir.

Entre zumbidos e picadas, ardores e coceiras, o barulho da caixa d’água

finalmente enchendo. Aleluia!

Talvez dê para dois ou três dias, não mais.

...

Uma da madrugada.

Os zumbidos e as picadas continuam...

Que inferno... Tenho alergia a repelente. A pele coça, incha. O nariz entope, escorre.

“Vou morrer”, digo,

sem água,

sem sangue,

carregado pelos pernilongos

– voo tranquilo noite adentro,

até o reino onde tudo dorme,

tudo...

para sempre.

Meus olhos ardem. O tempo é duro, pesado. A noite é escura.

Tudo é frio, seco. Nada rompe.

E eu não morro...

Não quero morrer...

Não hoje.

Minha família dorme.

Meu filho respira pela boca, ronca, por causa de uma adenoide inflamada.

Nos meus ouvidos, na minha cabeça, dentro do meu crânio, atrás dos olhos,

os pernilongos

zunem

impiedosamente.

Uma bomba d’água começa a funcionar em algum lugar.

Não sei se penso ou se sonho, mas ouço alguém dizer:

“Ficaremos quinze dias sem água, talvez vinte, ou mais”.

Ouço vidros quebrando, gritos. Sinto cheiros: urina, suor, sujidades na pia...

“Será que é aqui?”, pergunto. De dentro da noite uma voz me responde: “Sim”.

Levanto-me. Vou ao banheiro. Dou descarga nas urinas de ontem e anteontem. Ando pela casa...

“A nuvem de pernilongos está toda aqui dentro, TODA!”.

Cubro meus filhos. Seus pés estão sujos, as mãos também. A menina coça o inchaço de uma picada no rosto.

...

Três e meia da madrugada.

Atento, escuto:

duas bombas vizinhas levam água das caixas reserva para as principais,

meu filho ronca,

os pernilongos infernizam, sibilantes, implacáveis,

e essas vozes, que eu não sei...

não sei...

Acho que enlouqueci.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 09/07/2014
Código do texto: T4875265
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.