Mentes que dormem.

A insônia grita, como um canto inaudível ao pé do ouvido, como sopro brando em meio às frestas da parede de madeira. A mente irosa corre com pés afoitos em busca do sono que se fora. Fica, indaga a mente, e em tom irônico o sono para, olha de canto de olho enquanto a face se adorna como se fosse meio sorriso, olha novamente o horizonte e continua em passos largos sua jornada impoluta.

A mansa madrugada se entrelaça vazia e só, se não fosse às mentes inquietas que no vão da madrugada se aglutinam em pensamentos ligeiros, receosos que hora dormitam, ora acordam, numa eterna fricção sináptica, desnudando a vida, despindo a alma.

Livre da árdua batalha chamada dia-a-dia, ouço bocejos de medo, e roncos de raiva, alguns espasmos de alegria a se misturarem com ataques de pesadelos. Suspiros singelos, e corações palpitantes, e glóbulos oculares trêmulos e frenéticos entre as pálpebras cerradas.

Ouço da noite um sarcasmo maligno e uma gargalhada maquiavélica, rindo das pobres almas tépidas e desbotadas que por hora se encontram inerte. Em tom suave e despretensioso peço o porquê da impavidez do momento. Ora essa, responde a noite, a nós notívagos está velada à sobriedade enquanto as almas ébrias se esvaem mansamente.

Vê? Os corpos estão estáticos sobrepujados pelo labor diário, aqui se cessam todas as dores, não há competição, nem correria, vejo lençóis de medo formar leito, travesseiros de angústias virarem ninhos, edredons de felicidades a brincarem na chuva de pena de saudades vindouras, provocadas por colchões matreiros.

Me de a mão caminhe comigo, diz a noite, cerro os olhos sobre camada densa do quarto, piso te nuamente o rijo chão para não acordam as milhares de mentes que dormem, tanto na gélida madrugada quando nos dias radiosos.

Andamos pelas veredas da vida, e algumas vielas onde a luz teima em ofuscar a noite, ora vagando por casas, ruelas e avenidas congestionadas por sonhos que por hora adormeceram vencidos pelo cansaço. Não estou só, vejo pontinhos reluzentes que se multiplicam até não mais contar, e nesse emaranhado de insones a noite passa acordada.

Vejo lares, vidas expostas, passo por bairros, vejo de janelas maridos renegados a um canto no sofá, e esposas em prantos nos quartos solitários da vida, onde outrora era recanto de afago e desmedidas quenturas.

Com o olhar condoído, enternecido pela doçura do momento, observo de longe. A noite logo de cara se apercebe ligeiramente e diz, o que vê? Vejo tenro semblante a reinar com ternura sobre seu colo, sem mostrar nenhuma chispa de preocupação mundana, como que se fosse sua única causa só dormir, a espera de um breve acordar.

Como ladrão que chega sorrateiramente na penumbra de seus atos agudos, à noite me diz em tom de balbucio. Logo ele cresce e será mais um entre tantos iguais, inócuos a vogar pelo mar febril da debilidade humana.

Voo por casas, prédios, mansões, e barraquinhos de dignidade onde pisam pés pelados e calejados pelo esquecimento. Voo por lares de Marias, joãos e Pedros.

De repente num quarto da vida, ouço um cochicho, de um lado da cama vejo um anjo, pálido, cabisbaixo, dominado pela tristeza, exasperado rogando entre límpidas gotas de choro, o porquê da partida. Do lado oposto a morte sorria, conspecta, como que se vitória tivesse gosto, sobre o coração inerte.

Fora João, pai de Alice e Caio, esposo de Maria, uma mulher dedicada, que na sádica jornada do dia a dia, sobre o olhar frívolo do marido, numa jornada dupla de mãe e esposa fiel, se esfarela por dentro e morre a cada dia, quando o marido chega em casa bêbado, e desfere golpes, e coabita com ela sem seu consenso, mas não mais.

A noite se fora, as vidas começam a se espreguiçar, entorpecidos pela madrugada o corpo toma forma, mas as mentes permanecem ali, intactas, dormentes, a espera do dia em que seu dono a desperte.

Andre Santana
Enviado por Andre Santana em 09/07/2014
Reeditado em 11/07/2014
Código do texto: T4875683
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