SEM VERGONHAS (EC)

Mudara a dificuldade.

A mesma sensação lhe vinha. Pequeno, parecia-lhe quase impossível alcançar o vidro com guloseimas. Numa das tentativas, esticou-se todo e o pote veio ao chão, quase cortando as mãos do travesso garoto. Envergonhado e temeroso da ralhada que levaria, tentou em vão juntar os caquinhos espalhados pela cozinha. Ouviu novamente as recomendações da mãe para que pedisse quando quisesse o doce.

Rápido o tempo passou, o menino cresceu e com facilidade apanhava os doces que quisesse.

Ao tentar pegar o vidro das proibidas balas, que lhe pioravam a diabetes, o pote escapou-lhe das frágeis mãos. Envergonhado, tentou esconder os cacos antes das recomendações repetitivas da filha para que pedisse quando quisesse algo.

Mudara o sentido da vida.

O menino olhava a janela e nem sentia o tempo voar. Ainda iria desvendar os mistérios do mundo. Por que havia escuridão e claridade, por que as pessoas cresciam, para que se estudar e trabalhar. Não se sabia feliz empinando pipas, pescando no riachão, chutando bola.

Ele olhava a janela e desejava que o tempo passasse cada dia mais devagar. Envergonhado por não haver desvendado os mistérios do mundo. Aprendera a caminhar entre claridades e escuridões, mas nunca entendera porque as pessoas cresciam, para que estudar e trabalhar tanto. Sabia, impossível empinar pipas, pescar no, hoje morto, riachão, chutar bola.

Mudaram simples rotinas.

Entre tímido e envergonhado, ofereceu o lugar à idosa. A meninice não compreendia por que lhe fora ensinado fazer isso. O significado de educação e respeito eram detalhes ainda não bem amadurecidos. O procedimento tornou-se hábito para ele.

Maduro, entre agradecido e envergonhado, agradeceu ao educado jovem que lhe cedera, respeitosamente, o assento de uso coletivo, pois os preferenciais estavam todos ocupados. Já lhe abatia a velhice e não entendia por que essa atitude era ainda rara para tantas pessoas.

Mudara o tamanho da fralda.

A sensação envergonhada parecia-lhe a mesma. Longos anos se passavam desde a tenra idade, quando urinava na cama entre uma e outra noite no aprendizado da retirada definitiva das fraldas. Pequeno que era tentava esconder a umidade da cama.

A incontinência se ampliava dia após dia e, a contragosto, vestia o fraldão geriátrico, para evitar a certeza do amanhecer encharcado.

Ciclo da vida.

Mudara a imagem no espelho.

De repente, certa noite, a primeira espinha. Envergonhado tentou escondê-la. Sua face estava horrível. Imaginava algum castigo e nunca mais melhorasse sua aparência. Todo dia se olhava e contava se haviam aumentado. Chorou muitas ocasiões. Com o passar do tempo, como é natural, elas sumiram...

Na rotina matinal, o rosto cheio de rugas olhava o espelho. Não era de todo feio, mas o desgaste era definitivo. Nem ligava se aumentavam ou não.

Afinal, no frigir das reflexões do dia a dia, despercebido entre tantos erros e acertos, o longevo menino pouco tinha a envergonhar.

Embora, algumas vezes, tenham chorado escondido.

---------------------------------------------------------------------Este texto faz parte do Exercício Criativo - Que Vergonha!

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 14/07/2014
Reeditado em 14/07/2014
Código do texto: T4881333
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