Retrato Infiel

Tiro uma foto tua. Um instantâneo desse momento (nosso). Segundos que, guardados nos limites da imagem fotográfica, percorrerão os anos. Ao passar das décadas, lá continuará teu sorriso discreto. (A Eterna Idade tua, no momento do clique, numa lembrança à Eternidade. Uma garantia de nossa cumplicidade. Eternamente nós dois...

Guardo comigo uma lembrança tua. Desde o dia em que nos conhecemos -- o vento levava, numa queda livre, porém poética, as folhas que, não sei dizer se por rebeldia ou exagero de maturidade, soltavam das árvores que acompanhavam as calçadas. Aquela época era nossa -- e mais nada.

Ainda levo comigo outra lembrança tua. Da rua em que tu moravas. Da casa em que tu vivias. De teus tempos de escola. Eu, terminando o Segundo Grau, me despedia de uma importante fase de minha vida. Vida, vida, vida... Vida deixada para trás, naquele municipiozinho... Um pedacinho de meu coração ficou por lá...

Venho, por meio deste registro crônico, expressar minha singular saudade de nossa imagem. Tu, na janela. Eu, na calçada. Você... Aquela música* me marcou. (Perdoe essas lágrimas de saudade. De anseio. Não posso contê-las; e me pergunto: haverei de vê-la?)

Hoje acordei mais tarde; o motivo? São as férias. Só isso. Elas me permitem respirar com um pouco mais de tranquilidade. Através delas posso sonhar um pouco mais. Acabo de cruzar aquela esquina em que nos trombamos pela primeira vez, dando de encontro contigo. Fiquei bastante sem graça pelo ocorrido... E com muito vergonha. Heh-heh... Os anos passam, não? Mas parece ter sido hoje. Agora.

Sabia que pintou uma vontade louca de escrever um livro sobre a gente? Er... Verdade. É isso mesmo! Sobre os meses em que ficamos junto durante três horas seguidas, depois da tua aula. Lembra de quando ficamos juntos, encostados no muro de tua casa? Até uma e meia da manhã? Então... Depois daquela noite... Nunca mais, não? Er... Eu sei. No último sábado você me mostrara um retrato teu almoçando naquele restaurante especializado em comida mineira. Com a boca cheia, sorria, meio sem jeito. Lembro-me, de vez em quando todos os dias, desse tua foto. Serve para me fazer pensa naquele sábado à tarde. No último dia de fevereiro. Com clima ameno. Acho que a gente já escreveu a nossa história dentro da história de cada um de nós, não?

Hoje eu leciono em uma universidade. Soube que você teve um único filho. E graduou-se enfermeira.

Comecei a escrever esta carta porque vi um homem tipicamente vestido. Ele, vítima do alcoolismo, era conduzido cuidadosamente por sua filha. Que me lembrou demais você. O homem estava todo vestido de preto e me lembrou Charuto, aquele vagabundo que foi obrigado a vender latas amassadas, depois que sua última companheira morrera envenenada por ele, mas sem deixar suspeitas. Depreender-se-ão, os que tenham um tino mais aguçado para maliciar, que "amor com amor se paga", não? Mas deixemos de lado essas besteiras todas.

A tarde caiu do prédio hoje. Qual fagulha de fogueira de São João. A noite, já dona do pedaço -- desta cidade conturbada, pós-moderna, enlouquecida pela Orquestra da Boca do Lixo que é esse conjunto de automóveis ruidosos, faróis luminosos e um ou outro som de tiro que corta a madrugada, essa mulher da dívida encomendada --, estende seu manto frio e incerto. E penso eu -- ainda que cético -- se não haveria algum poeta de mão cheia por perto. Para me dizer como te escrever uma carta como esta.

Esteja onde estiver, Falecida, receba-a com carinho. Com toda a Paz do mundo. Que o mundo carece de Paz. Que quem se lembra de ti é porque não te esquecei jamais. Que o nosso tempo acabou. Que a tinta da caneta acabou. Não dá pra te escrever mais.

Mas que algum leitor -- em teu lugar e em meu nome -- levará esta carta consigo. Como eu levo comigo a tua imagem. Naquele teu retrato da parede. Que não está mais lá.

NOTA

* A despeito de haver referências (pessoais e impessoais, isto é, do tipos culturais, sociais etc.) a elementos diversos, sempre quis (e continuo querendo, Leitor) fazer uma referência a "O Bêbado e A Equilibrista, de Bosco e Blanc. A mim, um dos maiores tesouros artísticos (música e letra) e poéticos de nosso povo. Letra fortíssima, que sempre me faz lavar os olhos de dentro para fora, achei, na oportunidade desta crônica, o momento certo para citá-la, ainda que um pouco disfarçadamente. A figura da equilibrista, talvez o perspicaz leitor (tenho essa imagem de meu público) a possa encontrar. Ela se apresenta discretamente. Mas, em minha mente de autor, ainda que de escritor amador mesmo (qual o problema em ser amador, desde que seja escritor?), ela tem um papel fundamental. Mas a canção a que faço a primeiríssima referência é "Esperando na Janela", do Cogumelo Plutão. (Não por acaso, essa canção pertence ao disco "Biblioteca de Sonhos" deles). Somando-se as duas canções, temos uma dupla das mais expressivas produções líricas e poéticas sonorizadas, que marcaram o Século XX (a meu ver, claro).

O(a) caríssimo(a) e distinto(a) leitor(a) tem "em mãos" mais um daqueles meus textos em que algumas "mensagens ocultas" ora permeiam, ora passeiam "livremente" pela extensão do texto.

Ao amigo(a) leitor(a), provavelmente ele(a) também um escritor (com iguais chances de, em breve, ser reconhecido como revelação -- se não o for, que mal haveria em não sê-lo? Podemos viver bem sem os holofotes do público dos best-sellers, não?), o meu único pedido: recomende este (e ainda outros de meus textos) texto caso achá-lo interessante. Gentileza gera gentileza e faz o mundo rodar bem melhor, não?

Muitíssimo obrigado pela atenção que me é dispensada, Caríssimo(a) leitor(a). Tamo junto, não?

;)

FOCHETTO JUNIOR, Wellington Vinícius