tamanho original Meu Adeus ao BOÊMIOtamanho original

Festa de Bela Vista termina este final de semana

Não lembro-me o ano exato. Entre 2001 e 2003 certamente. A depressão não computa datas nem tempo quando se instala. Só dá espaço a si mesma. A sua consumição diária. E assim, quando meu grande amor de tantos anos chegou ao fim, ela (a depressão) assumiu seu lugar.

Estava com medo, perdida, sem saber que rumo dar a minha “nova vida”...
Arrependida por ter amado sem limites e por tantos anos ter me entregado por inteiro, esquecendo de amar a mim mesma, se não com tamanha intensidade, ao menos com mais respeito aos meus projetos e ideais de vida. Afundei no mais sombrio abismo. Apenas uma mão, vinda não sei de onde, me segurava para não cair de vez no precipício sem volta, sem fim...

Nada consolava o vazio deixado ao fim daquela paixão avassaladora, irreverente, boemia, encantadora!
Quando chega o fim da história e colocamos o ponto final é porque de fato acabou. Mas eu permanecia em reticências envolvida pela doença.

O sonho acabara.

E mesmo em momentos de saudade e lamentações, no fundo, bem lá fundo, agradecia por ele ter ido embora e por eu ter, em momento de coragem e libertação, ter colaborado para que ele fosse embora de vez...Liberta estava das amarras! 

E quando a depressão passasse (e eu conseguia, por pior que estivesse, acreditar que ficaria curada!) poderia enfim seguir um Novo Caminho: O Meu Caminho. 

Meu coração: dilacerado!
Minha alma? Conturbada e sombria!
Amarga a voz que vinha do passado dizendo:


-“Eu te avisei e em tua surdez não me deste ouvido!”

Mas agora de nada adiantava. O que se foi, já se deu. A voz que me falava não me servia de consolo, ao contrário, me atormentava! 

Meu irmão, sempre tão ausente, desta vez veio em meu socorro e alugou uma enorme e linda casa para onde me mudei com minha filha.

Éramos eu, minha filhinha, minha avó, mãe, meu irmão e um Anjo caído do Céu em forma de diarista que cuidava de mim como quem cuida de uma antiga amiga.
Fui como vai um zumbi. Sem amor, sem alma, sem Luz. 

Nem mesmo minha pequena conseguia trazer-me alegria. Se às vezes eu sorria era só para disfarçar a vontade de morrer e dar para minha criança a sensação de eu estava melhorando, de que ficaria “boa” logo e de que estava atenta a seus pequenos progressos. Hoje sei que na verdade, sofreu comigo minha menininha. 

Amaldiçoei aquele que um dia disse ser meu marido. Não tanto pela vida que me roubou, mas pela dor que eu percebia nos pequenos olhos castanhos da nossa (hoje só minha!) pequena princesinha!

Lancei sobre ele toda a força negativa do meu pensamento.
Pedi aos Céus que o condenasse à solidão e à pobreza!
Seu nome lancei ao inferno tamanha era minha dor, tão grande era minha tristeza!

Doente, já não queria nem mesmo ver a luz do sol...
Trancava a pesada janela de madeira, passava a chave na porta e só permitia a entrada da minha filhinha que dividia o quarto comigo e do meu Anjo chamado Carmem que vinha diariamente cuidar da arrumação e limpeza do mausoléu da morta-viva!

Saía apenas duas vezes por semana, empurrada por uma força interior que clamava por minha recuperação para ir ao Leblon e à Copacabana onde fazia as sessões de terapia e psiquiatria.

Levava minha pequena comigo nas sessões de terapia...
Hoje, minha terapeuta é grande amiga e serei sempre grata a ela. Não pelo profissionalismo, mas pelo carinho e dedicação com que se empenhou em 'meu caso'. Mais um, entre tantos outros que atendia.

Eu? Eu só via o abismo!
E quantos apareceram para me empurrar ainda mais!
E quantos maldisseram as atitudes que tomei!
Quantos ironizaram meus erros!


- Viu só no que deu? Eu sabia!
- Agora o problema é seu... - eu ouvia!


Mas ao contrário do que previam e propositalmente ou não, faziam no dia a dia, lançar-me de vez ao fundo do abismo com palavras desencorajadoras, abismo de onde eu jamais voltaria, fui ganhando forças e lutei!

Comecei bem devagar e aos poucos fui novamente readquirindo meu brilho e força de guerreira!
Desta vez por mim mesma!
A maior e mais importante batalha do Mundo passou a ser a Minha!
Lutei bravamente por mim, por minha alma e para que a única mão que me segurando na ponta do abismo, impedindo-me de despencar de vez, ter força sobrenatural para ajudar-me a puxar o peso do meu corpo e da minha alma para cima!
Foi a tarefa mais difícil de minha vida! Sugou-me toda a energia!

Mas quando à Copacabana eu ia sozinha, depois das sessões de análise, sentava no calçadão, olhava para o apartamento onde morei por algum tempo à beira-mar, em frente ao Posto 6! Tomava água-de-coco, andava descalça na areia, pulava ondinhas do mar! 

E por alguns momentos voltava a ser criança, com a pureza e inocência inerente aos pequeninos...
sentava um pouquinho ao anoitecer diante do oceano e rezava, reaprendendo a rezar...
saía dali mais amada, mais forte, mais consolada!

E isso se repetiu por dois anos. Nem vi o tempo passar. Meu relógio biológico e espiritual estava parado! Tempo era pura abstração.

Eram tantas as lembranças em frente àquele mar...
Fui peneirando lentamente as boas das ruins e selecionando o que deveria guardar e o que deveria jogar ao mar para que ele levasse para o outro lado do oceano...

Às vezes bem de tardinha na casa onde eu morava eu saía para passear no jardim.
Como era lindo o jardim! Mas o que eu realmente procurava era o som que podia sentir vindo da casa mais acima do morro, dividida da nossa apenas por uma cerquinha de arame. Pertenciam as duas ao Poeta!

Eu o via ao longe às vezes, mas não sosseguei até que, - como que por acaso -, encontrá-lo à beira da cerca.
Já bem idoso, seus olhos ainda carregavam a BOEMIA!
Aproximei-me devagar enquanto ele olhava para um canteiro mal cuidado, beirando a cerca, como se procurasse alguma planta esquecida, ou uma nota perdida...

Me atrevi e disparei:


- Boa tarde, Adelino Moreira!
Meu nome é Marcela. Posso em meio a uma enorme saudade e dor ouvir de ti apenas um trechinho da eterna poesia? Eu cantava com meu pai quando era bem pequenininha. Por favor, poeta...Minha alma está doente e serei sempre grata...


Ele olhou-me fundo nos olhos, nem sorriu, nem disse nada. Abaixou novamente a cabeça, voltando os olhos para o canteiro e cantarolou os versos que recebi com a alma aberta, como presente maior de Deus, enviado por um Poderoso Anjo:


"Boemia
Aqui me tens de regresso
E suplicante eu te peço
A minha nova inscrição
Voltei
Pra rever os amigos que um dia
Eu deixei a chorar de alegria
Me acompanha o meu violão
Boemia
Sabendo que andei distante
Sei que esta gente falante
Vai agora ironizar


(As lágrimas corriam em meu rosto e bem baixinho, também cantei...)

Ele voltou,
O boêmio voltou novamente,
Partiu daqui tão contente,
Porque razão quer voltar?


Meu coração explodia! Saudades de meu pai...lembranças de vida! Calei-me para ouvir O Poeta!

Acontece
Que a mulher que floriu meu caminho
De ternura meiguice e carinho
Sendo a vida do meu coração
Compreendeu, e abraçou-me dizendo a sorrir
Meu amor você pode partir
Não esqueça o teu violão
Vá rever
Os teus rios, teus montes, cascatas
Vá sonhar em novas serenatas
E abraçar teus amigos leais
Vá embora
Pois me resta o consolo e a alegria
Em saber que depois da boêmia
É, de mim, que você, gosta mais".



Minha alma se expandiu, minha mente dilatou, mas permaneci impávida.
Deixei apenas que as lágrimas corressem em minha face sem vergonha, sem temor, como se fossem apenas pela emoção de ter só pra mim, separada apenas por uma cerquinha de arame, O Poeta.
O Poeta da minha infância. De tantos noites na varanda cantando com meu amado pai...
aquelas lágrimas foram muito mais do que posso descrever! Foram um Milagroso e Santo Remédio!

Respeitei seu silêncio quando se afastou e calei-me evitando qualquer comentário.
Ao final apenas levantei o rosto molhado, esperei que olhasse para trás e ele olhou. Sorrindo, eu disse:


- Obrigada, poeta! Eternamente, obrigada!

Ele se afastou andando com dificuldade.
Permaneci segurando firme no arame da cerca, sem perceber que de tanta força que coloquei nas mãos, elas sangravam machucadas.

Muitas coisas aconteceram naquele casarão.
Mas naquele dia, naquele fim de tarde, entrei em casa sem dar ouvidos à histeria de minha mãe ou a qualquer comentário que me tirasse das nuvens onde flutuava.
Meu mausoléu já não me pareceu tão escuro...
guardei somente para mim este momento mágico e somente agora consigo colocá-lo em palavras.

Neste conto de gratidão despeço-me do Poeta.
Ele não soube, mas contribuiu de forma positiva para o meu retorno. Para subir vários degraus de uma só vez na fuga da depressão.


Adelino Moreira, parceiro de Nelson Gonçalves em A VOLTA DO BOÊMIO, faleceu alguns dias depois.
Não fui ao seu enterro.


Despedi-me do Poeta cantando agarrada à cerquinha.


by MarCela Torres

Campo Grande, Rio de Janeiro


IMAGEM retirada da net

Music tamanho originalA Volta do Boêmio tamanho original Nelson Gonçalves


Compositor      tamanho original ADELINO MOREIRA  tamanho original



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MarCela Torres
Enviado por MarCela Torres em 15/05/2007
Reeditado em 23/10/2012
Código do texto: T488633
Classificação de conteúdo: seguro
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