Recompensa de um velho moribundo

Sentou-se numa cadeira de vime na varanda de sua casa e respirou fundo a brisa da manhã. Os olhos já não eram a mesma coisa como antes, como sempre fora: espertos quando procuravam medir as sensações das coisas, dos desenhos, dos projetos e da força que via neles. Uma construção bem feita, bem acabada com cores que diziam exatamente um pouco de cada um que teve parte nela, e que o viu criá-la. Quando pronta, ficava audaciosa. E graciosa avançavam além dos beirais sem se dar conta de sua imponência aos céus.

Ah, sim! Belos tempos, bons demais para serem verdades. Verdades que um dia tocava-o pelos braços que tinham forças, que mandavam vigorosos que se nascessem que se crescesse que se surgissem devido ao labor de um homem cujo coração empenhasse languidamente as suas inspirações curvilíneas.

O amor estava nisso. Infinitamente mais, alem mais do que a qualquer um que não entendesse. Para Jair uma perspectiva da vida não se fazia só de retas, mas sutis e belas curvas. Uma linda jovem que avançara brusca e impetuosamente diante aqueles olhos azuis e se apaixonara como uma tempestade voluptuosa.

Ah, que audácia naqueles tempos bravios! Quando os ventos traziam fagulhas de um futuro que davam esperanças aos jovens guerreiros de desbaratar no peito as matas virgens de cipós e espinhos que rasgavam a pele daqueles desbravadores que não temiam o amanhã.

E Jair plantara as sementes que eram suas, que para ele eram a mais perfeita construção da vida. Eram arvores que se tornariam fortes de troncos espetaculares e raízes profundas nas equações da vida.

Mas aquele homem visualizado ali naquela cadeira esfolada, torto e trêmulo estava agora pronto. Posicionei-me para vê-lo, para senti-lo, para enfim observá-lo. Eu de minha parte estava ali junto, emocionando-me com imenso tesouro interior. Mas por outro lado, ele não estava presente, estava mudo, estava surdo e não me via. Pus-me diante aqueles olhos fundos, estranhos e que estavam baços, esbranquiçados. Não havia mais vida neles, não, nem sequer brilho. Suas palavras eram surdas, os olhos emudecidos pela vivencia dos anos. Quando os perscrutava na sua face, tremiam suaves e roxos como se dissessem “O amanha não mais me importa...” e sua pele sensível e ressequida umedecia com a descida de uma pequena gota.

Os seus remédios eram dados com rudeza, com a brutalidade descomedida. A tremura de seus braços apoiava cambaleantes naquela bengalinha de um galho seco que ele mesmo quando podia, cortara demoradamente de um pé de goiaba.

Não havia dia em que quando o procurava não o achava triste, sem esperança, por causa do descaso com sua vida, de um agricultor que um dia fora. Das suas entranhas saíram raízes que se tornaram prepotentes e orgulhosas quebrantando o coração de sua origem.

Então quando seus tímpanos frágeis, débeis e sonolentos eram aturdidos pela violência em que soavam as palavras soltas e impensadas, para ele fosse melhor que o ouvissem com aquela voz rouca e lhe dessem pelo menos um pouco de atenção, mas que ninguém ouvira e ninguém se importava; palavras proferidas de formas hesitantes:

— E-eu q-quero ser Chico-coteado!

Poderia parecer estranho que ele falasse assim, mas era a realidade de um pai desprezado pelos filhos...

Mas que eram com “ternura” de espírito recebido e dispensadas respostas incompreensíveis.

— Esse velho esta ficando louco! Por que lhe bater, se ninguém quer seu mal? E jogava-lhe mais um prato com comida que rodopiava sobre a mesa. Um prato de alumínio já amassado nas bordas. “É o mesmo do Totó” Murmurava o velho. Que ele não se importava, era seu único amigo a abanar-lhe o rabo, lamber suas mãos e deitar-se sobre seus pés frios.

Às vezes, achava eu que Jair entendia o mundo de uma forma diferente, pegava-o vago e distraído iluminando seus olhos com o canto de beija-flores, quando o via aspirando à vida que penetrava nele de uma esperança que eu não entendia e que lhe saía pelo cantinho da boca num sorriso difícil.

Era duramente criticado: Porque voltara a ser “criança”. “ Orelhas de abano” e porque seus cabelos e pele sobravam um pouquinho em cima dos lençóis. Na verdade, era um homem que estava se desfazendo aos poucos. Porque se deprimindo coagido pelos insensíveis do dia-a-dia, fazendo-o que se sentisse um completo inútil para a vida. E que não os serviam mais. Era agora só mais um peso... aquele que lutara, que cuidara, que alimentara e que enfim amara.

Presenciei a cena mais inesperada em um dia frio e chuvoso. Sentado e distante da própria vida Jair pronunciara com a voz embargada para os filhos e netos:

— P-preciso de um a-abraço...

Enquanto todos se espantavam assombrados com as palavras do velho, constrangidos e sem saber o que fazer Erika, sua netinha mais nova, foi correndo para os braços do avô. Deu-lhe o abraço mais gostoso de toda sua vida que ele recebera como algo sem preço sentindo que despachou sua ultima centelha de força. Antes do ultimo suspiro, antes de escorregar de leve a bengala de suas mãos inseguras falou a neta:

— O-obrigado... Deus te abençoe...

Quando as lagrimas de todos desciam copiosamente, Erika o balançava e gritava:

— Vovô! Vovô! Acorda!

Geovani Silva— Contos e Crônicas

Geovani Silva
Enviado por Geovani Silva em 20/07/2014
Código do texto: T4889373
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