ALÉM DAS APARÊNCIAS

Realmente não sei por onde começar... Mas preciso e quero escrever.
Chatices, brigas, ofensas, autoritarismo, incompreensões, longos monólogos, tudo isso ficou tão insignificante, frente à pujança dos seus noventa anos comemorados de uma maneira quase celestial.

Em meados de outubro do ano passado meus irmãos me chamaram às pressas pois meu pai não estava bem e segundo parecer médico faleceria em poucos dias e o comentário então era de que assim que me visse – se desligaria. Apesar de todas as diferenças, entre meu pai e eu, já mencionadas em textos anteriores – atendi ao chamado.

Tomei o avião e durante a viagem, como que num filme as mais diferentes cenas começaram a rodar na minha mente. Lembranças – muitas lembranças... Engraçado como que turbilhões de fatos, acontecimentos, momentos - agradáveis, desagradáveis e muitos outros nem tanto, vão se desenrolando e como numa regressão percebi muitas semelhanças entre nós. Descobertas que me deixaram boquiaberta... Dizem que o fruto não cai muito longe do pé, não é mesmo?

Defeitos são muito fáceis de serem detectados e apontados e criticar, nem se fala... Mas o que dizer das qualidades, virtudes? Enquanto a cabeça girava em meio às lembranças fui me dando conta que por trás de toda aquela sisudez e rabugice surgia um ser que nunca dantes havia reconhecido. Sutilmente foram se apresentando as qualidades tais como: Zelo, capricho, gosto pela leitura e escrita, meditação, curtir caminhadas, amar o nascer e o pôr-do-sol, natureza, paciência, perseverança, organização, amor à vida, entre outras. Emocionei-me!

Chegando em Porto Alegre a surpresa maior foi encontrá-lo no hall de entrada a minha espera (como de costume) – agora um farrapinho, mas demonstrando coragem e força, apesar dos pesares. Aproveitei os preciosos momentos para dizer a ele que, por incrível que pudesse parecer, e tendo em vista todo o filme que eu havia assistido da minha própria vida, o quanto eu era parecida com ele, aliás a filha que mais se parece com ele e demonstrei minha sincera gratidão por tudo o que ele tinha semeado de bom. Em outros tempos ele diria: “Ah! Vamos parar com essa rasgação de seda” mas naquele instante esse reconhecimento foi necessário para ambos. Com sua voz já muito fraquinha e bem baixinho escutei um – ‘muito obrigado, Mausi’ . Dali em diante meu pai foi definhando, porém permanecia lúcido e lutando bravamente para que a pequena centelha que ainda restava permanecesse acesa e viva. Cuidei dele durante um mês e seu quadro estabilizado num patamar péssimo, aquela sensação de vai ou não vai acontecer o desenlace, fui obrigada pelas circunstâncias a voltar para minha rotina de trabalho.

Medicamentos mudados, alimentação ministrada via nasal... Passados cinco meses – muletas foram aposentadas, bengala abandonada – volta-lhe o vigor, acontece o renascimento.

No último dia quinze de abril meu pai completou noventa anos. Viajamos, filho e nora me acompanharam, com o propósito único - homenageá-lo. Ledo engano! A homenageada na verdade fui eu. ‘Pau que nasce torto permanece torto’, diz o ditado e por isso as chatices e rabugices estavam presentes, mas não pesaram nada diante da agilidade com que tocou a sua gaitinha de boca - com um fôlego de guri, animando o seu próprio aniversário. Particularmente, compartilhamos com profundidade nossos assuntos zens – não sentimos o passar das horas... É muito difícil transcrever em palavras a sublimidade dessa troca, para mim beirou o divino e o divino está além das palavras e descrições.
Beatriz Knorr
Enviado por Beatriz Knorr em 16/05/2007
Reeditado em 17/05/2007
Código do texto: T489608