O quadro

Boa tarde meus estimados 23 fiéis leitores e demais 36 de uma passadinha de vez em quando, eis-me aqui, na Baca Hora, no Baca dia e no Baca local.

O QUADRO

Desde que eu me conheço por gente, ele estava lá, fixado na parede do apartamento. Ela, nele, aos quinze anos. Presente de meu pai, seu afilhado, como eu. Ele pegara o pequeno retrato em escala de cinza e mandara um profissional ampliar e colorir, lá pela década de 1970. Excelente o trabalho do homem, parecia uma pintura primorosa, olhando-o a certa distância.

Eu já a conheci com uns 60 anos. Eterna ela. Terna ela. Uma pessoa admirável. Um dia, há muito tempo, me disse:

- Tunico, quando eu morrer, esse quadro será seu.

Adoro o quadro. Ela está linda nele. Ela sempre foi linda, uma das mulheres mais lindas que conheci. Não somente pela suavidade do rosto, mas também pela delicadeza dos modos a esconder uma forte personalidade matriarcal. E, de fato, era o centro de nosso família. Centro de fato, não só pela idade, mas pela inteligência, bom senso e postura.

O tempo foi passando, passando, ela envelhecendo, sem perder o charme e o viço. Falava e ouvia perfeitamente, aos 100 anos. Fui na sua festa de aniversário, o grande evento da família Bacamarte. Ela lá, andando, falando, ouvindo.

Chegou para mim e me pegou de surpresa:

- Há algo de triste em teus olhos meu filho, o que é?

Fiquei todo arrepiado. Só ela percebeu. Passava, à época, por um drama interior. Ninguém percebera. Ela, foi colocar os olhos em mim e notou.

Aos 102 anos ela morreu. Foi-se, dormindo. Numa das últimas visitas que fizemos ao seu apartamento, ela disse:

- Tunico, a única coisa que realmente me incomoda é eu não poder andar.

Quatro meses antes da data final, ela estava se locomovendo de cadeira de rodas. Mas a ternura, a lucidez e a beleza permaneciam incólumes.

Minha tia, que vivia com a minha madrinha como se filha fosse, entregou-me o álbum com as fotos dos 100 anos dela, para minha surpresa. Sobre o quadro, pediu que eu o deixasse em sua posse, no apartamento, por mais um ano, que ela não queria tirar a madrinha de lá assim, de supetão. Concordei.

Quis Deus que minha tia durasse menos que um ano, apenas poucos meses mais. Um câncer no cérebro a levou, para a surpresa e estupefato de todos nós.

Questões de herança começaram a conflitar a família. A bosta da grana. Abri mão de tudo, seja lá o que fosse. Dane-se, dane-se essa bosta de dinheiro. Elas nunca, em vida, haviam falado nada comigo sobre isso. Queria apenas o que era meu. Queria o quadro.

De comum acordo, deixaram que eu o pegasse no apartamento, agora vazio daquelas duas presenças tão amadas e adoradas.

Hoje, depois de tantas décadas, que eu achava que nunca iriam chegar, eis que a tinha por eterna, está comigo o quadro. O quadro. O quadro dela, uma das três pessoas mais incríveis que eu conheci nessa vida, e agradeço a Deus por ter tido essa oportunidade. Uma pessoa única e ímpar, uma pessoa como poucas, rara, que a gente não vê nem convive todo dia.

Um quadro. Para os outros, uma ninharia. Para mim, tudo.

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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.

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(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Em 2014 talvez eu dê um jeito nisso... Mas acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013.)

Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 25/07/2014
Reeditado em 25/07/2014
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