Pavio

Amanheceu chovendo. O domingo promete um convívio agradável e íntimo. Estaremos a salvo das visitas. Com esse tempo, úmido, todos tendem a permanecer em suas casas. A falta do sol, o frio próprio do inverno, o fogão a lenha, o mate, todos são ingredientes que conspiram para criar essa íntima e boa convivência.

O pijama não desliza, insiste em ficar grudado no corpo. O cabelo não merece atenção.

As tarefas vão se delineando, e sendo levadas a cabo entre um alongamento e um bocejo. Diferente da correria de qualquer outro dia.

A louça do sábado à noite, as garrafas e taças de vinho distribuídas pela casa foram recolhidas, os móveis arredados colocados nos seus devidos lugares, os tapetes sacudidos, a veneziana da sala entreaberta, para que se vislumbre os pingos da goteira. O silêncio é invadido pelo ruído do vento nas árvores, pelo assovio nas arestas do telhado.

No domingo se começa mais tarde, o café da manhã se mistura com o almoço. A cama fica por ser estendida.... Antes que comece os canais de TV, desandar em programas de auditório, persiste a programação do rádio. Uma música suave, dedilhada em um violão com o lamento de um bandoneón, vão recheando o dia nostálgico. Chovendo, talvez vença e um bom livro se apresente como fecho, ignorando a audiência fácil.

Os diálogos começam com o mínimo. Entre olhares, gestos, senhas que ganham contorno de longas retóricas. No domingo reconstruímos, reconstituímos uma de nossas partes efêmeras, o pavio. Desgastado ao longo da semana que passou, Encandecido permeou os dias no trabalho, no trânsito, em nossas casas, sinalizou os enfrentamentos e as dificuldades.

A manutenção do pavio é garantia de que iniciaremos e encerraremos a semana com humanidade. Respeitaremos os limites do que reconhecemos por urbanidade. Enfrentaremos a diversidade, a contrariedade e as irracionalidades com ousadia. Precisamos pois apreender que por mais efêmero, é insubstituível. Ninguém merece ser extorquido. O que a evolução nos tirou de rabo nos devolveu em pavio.