Caso do mingau de maisena

Sob a rala iluminação de uma lâmpada de 60 Watts eu, no meu silêncio ansioso, me preparava para fazer o mingau de maisena para o meu pai. Devia ser outono, tempo do cinza que convida às dúvidas e angústias da depressão, do não poder ir além. Tempos de poucas certezas.

Bem antes do início da minha juventude eu já tinha que lidar com as agonias da fragilidade da existência, com a supressão de uma eventual, longínqua alegria e com a morte do meu pai batendo à porta. Antes: batendo na vidraça com insistência feroz quando teimávamos, humanamente, em pegar no sono. Os risos e brincadeiras de uma criança normal eu não tive – nem a petulância de sonhar com a felicidade - naquele nosso sobrado do Cambuci.

Com a pequena panela na mão, eu ia me preparando para ligar o fogo e fazer a mistura. Triste mistura! Um homem de quarenta anos tendo que se alimentar como bebê, sempre à procura de leite e de sopa de legumes e com macarrão cabelo de anjo. As dores contínuas e lancinantes não o permitiam sequer pensar num churrasco, num bom naco de frango assado, numa magnífica porção de strogonoff. Não, não! Longe disso. Longe da vida.

Misturando o leite, a maisena e um pouco de açúcar, eu ia imaginando como seria viver com alegria! Um exercício de imaginação com culpa e muita vergonha, pois a realidade – amarga e ácida – se desfilava pelos meus olhos míopes todos os dias, infalivelmente.

Insuportável fazer uma porção de mingau para um homem de quarenta anos. Homem magro, pele brilhosa de sofrimento, olhar grande, grave e duro.

E eu, imaginado o que seria da minha vida naquele Cambuci.

“Se um dia eu tiver um filho... não, ele não vai tomar mingau. Nem comer queijo branco. Sopa não: é sacrilégio. Fígado... nem pensar. Ele vai comer comida de gente feliz”.

Os dias não passavam. Iam todos se arrastando em meio a tristes porções de gelatina de morango e a casa sem flores. Nenhuma violeta. Apenas o vaso de antúrios da minha avó, até meio escondido, tímido, envergonhado por existir no nosso minúsculo quintal. Um dia a minha avó viajou para o Paraná. As flores não suportaram a solidão daquela que era a pessoa mais equilibrada da casa. Não esperaram nada, nenhuma explicação e morreram no dia seguinte.

O mingau tinha que esfriar naquele prato fundo... Detesto pratos fundos. Não tenho nenhum na minha casa. Odeio pijamas e outono. Repudio o cinza e tudo o que me lembra a ausência de vida, de alegria, de riso e de cor. E eu olhava com compaixão o meu pai se alimentando do mingau, pelas beiradas do prato. Silencioso, comia vagarosamente, deixando sempre sobrar uma parte.

Com profunda timidez e sofreguidão , muito lentamente, fui inventando a vida. Com aquela curiosidade menina, de olhar pelo olho mágico da grossa porta de madeira que dava para a rua Albuquerque Maranhão. Colocar a mão na maçaneta da vida era um atrevimento, uma ousadia ilimitada. Comecei a ensaiar os meus primeiros passos da caminhada com a minha amiga Ana Isabel, moradora de um cortiço na rua Ana Néri. Pessoa de profunda sabedoria na sua rala juventude. Moça negra, filha de faxineira, que não se escandalizava com a vida e tentava soluções viáveis para cada drama da existência. Se eu pudesse, eu pediria a bênção para ela.

As primeiras idas aos museus de São Paulo, o olhar para os quadros... e mesmo não entendendo quase nada, eu tentava que eles falassem comigo, me dessem alguma direção numa caminhada tão solitária e de profundo medo.

Eu voltava para casa: muitas vezes fiz o mingau. Outras vezes, chá de erva doce e pus à mesa com bolacha água e sal. Nunca um bom vinho com macarrão com molho grosso.

E eu teimava em olhar as luzes da cidade. Eu ia me aproximando da literatura da Cecília Meirelles com a identificação de quem tanto havia perdido e aprendeu a lidar com a solidão.

Tentei declamar uma poesia do Jorge de Lima para a minha avó numa noite no nosso quarto, quando ela já tinha suas retinas fatigadas e de pouca luz...sob a lâmpada de 60 Watts.

Quieta, fui andando, sentindo como se os sapatos estivessem apertados tal a ousadia de fazer estrada... limpando as lentes dos meus óculos. Fui andando primeiro pelas ruas do bairro, ouvindo o caminhar das pessoas, indo sozinha até o consultório do dentista, indo ao PEG PAG comprar o básico, ouvindo o desfilar do ônibus FÁBRICA-PINHEIROS pela Lins de Vasconcelos.

Sem dizer nada a ninguém, fui ao Templo Budista procurar iluminação. Ouvir palestras, tentando compreender o que era o mundo, ter opinião, estar presente em algum lugar desse mundo, buscar cores e sabores.

Andei pela avenida Paulista, pela Mooca, pelo Bixiga, pelas ruas de São Paulo, da minha São Paulo, muitas vezes me escondendo da agonia por trás do prato de mingau de maisena.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/08/2014
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