O herói e o leão (crônicas de antigamente)!

O herói desta façanha me é muito caro. É destas pessoas que deixam a vida um pouco mais alegre, e marcam a sua passagem por aqui através da sua irreverência e das suas histórias, verdadeiras ou não. Mas isso não importa. O que vale é que podemos despertar a criança que fomos, lembrando estas velhas lendas familiares quase esquecidas. Não sei se foi assim que a coisa aconteceu mas de qualquer modo, verdade ou lenda, é uma lembrança deste fantástico personagem que alegrou as minhas cenas de infância. Pois em uma fria e gélida madrugada, típica da "mui heroica e valorosa" Rio Grande, lá no fim do Rio Grande do Sul, rumava nosso herói para casa, abrindo o seu caminho pelo denso nevoeiro de uma madrugada de inverno. Vinha de lugar incerto e não sabido, ansioso para chegar em casa depois de algumas doses á mais de um escocês de respeito, o que não abalava em nada a sua natural coragem e perspicácia. No século passado, nos idos de quarenta, a cidade se recolhia cedo, o que emprestava ás ruas antigas um ar desértico, assustador para quem não é do lugar. Com passadas rápidas e decididas, cruzava a Praça Tamandaré, escutando os estranhos ruídos que a densa neblina ampliava e aos quais não deu muita atenção, pois nunca foi dado a se assustar com qualquer coisa. De repente, deparou-se com a visão mais espantosa da sua vida: Um leão!!! Lá estava o rei dos animais, parado em plena Praça, á poucos metros do centro da cidade! Enorme, majestoso, com a real juba tremulando ao vento, boca escancarada, as enormes presas cintilando, pronto para atacar e olhando fixamente na sua direção. Deu-se o confronto de poderosos olhares entre o homem e a fera. Diz a lenda que o nosso herói sustentou firmemente o olhar do enorme felino por muito tempo, até que, em uma rápida reavaliação da insólita cena, deu meia volta e disparou rapidamente do local, pois achou que não era hora de conferir se aquilo não era um tardio sub-produto daquelas doses a mais ou era verdadeiro. Ainda ouviu o rugido da fera ao começar a correr sem olhar para trás, dando uma enorme volta e entrando em casa esbaforido pela corrida, mas enfim em segurança. Ao acordar os familiares para contar o seu incrível encontro com um leão em pleno centro da cidade, foi saudado com olhares de descrédito, pois estes não aprovavam as saídas noturnas com os amigos. Diante do fato narrado e do evidente descontrole do intrépido boêmio, foi chamado com urgência o Dr. Barbosa, renomado Psiquiatra local, para avaliar o caso. Depois de muita conversa pelo resto da madrugada para convencer a família e o Dr. Barbosa que não teria que ser internado, foi dormir com o firme propósito de nunca mais beber. No dia seguinte, lá estava na primeira página do jornal local a manchete: “Leão foge do circo e é recapturado”. Na verdade, o bicho era manso, quase domesticado e foi encontrado e dominado sem dificuldades pelo pessoal do circo, que o levou de volta á segurança da sua jaula para alívio do domador. No fim de tudo, o nosso personagem, aliviado pela veracidade do fato, voltou á sua rotina das sextas-feiras, esquecendo a promessa de não mais beber, para irritação da família, mas tendo o cuidado de voltar para casa de táxi ou de carona com algum companheiro de copo... Sabe-se lá o que poderia encontrar nas noites de Rio Grande, já que a nossa cidade sempre foi palco de insólitos acontecimentos, que englobam desde encontro com discos voadores, fantasmas que perambulavam pelos telhados, a leões "atocaiados" na Praça Tamandaré ... O fato tornou-se uma lenda familiar, repetida e modificada de acordo com as circunstâncias etílicas, mas nunca negada ou confirmada pelo personagem. Prefiro continuar com esta versão e manter o herói e suas aventuras bem vivo aqui comigo. Afinal, não é qualquer um que enfrenta leões e sai inteiro por aí contando a história.Que continue este fantástico aventureiro "aventurando" pela vida, mas que tenha cuidado com os destilados de dezoito anos... Afinal, nunca se sabe o que as madrugadas da antiga Rio Grande de São Pedro podem oferecer... De qualquer modo, alguém me disse que, se a lenda é mais interessante do que a verdade, publique-se a lenda... Não dá pra discordar...