Coragem para ser feliz

A sala não estava preparada para um baile. Sobre a grande mesa retangular de madeira bem trabalhada os pratos grandes de brigadeiro exalavam os momentos felizes de mais um aniversário. Beijinhos de coco, igualmente em forminhas azuis, mais ao centro, fazendo uma silenciosa parceria com os cajuzinhos delicadamente modelados pelas mãos adocicadas da minha sogra. Nem sempre mãos adocicadas! O meu marido costuma dizer que a mão da mãe era por demais pesada quando os filhos costumavam exagerar nas peraltices.

O guaraná Brahma acompanhando os lanches com carne muito bem temperados. E muita conversa! Os convidados iam chegando e trazendo na alma, cada qual, um universo recheado de momentos felizes em meio às dificuldades da dura existência numa São Paulo que foi se definindo pelo trabalho, pelas distâncias e pelas incertezas. E cada um trazia sorriso farto. Presentes? Claro, recebidos com carinho. Mas o presente maior, indizível, era o comportamento de todos eles: uma amizade arraigada, um companheirismo sem conta, de décadas carregadas de partilha, de visitas ainda frequentes e muitas razões para gargalhadas profundas e reverberantes.

Casa cheia, as cadeiras ocupadas pelos mais velhos quando, repentinamente, alguém colocou uma música e nos pusemos a dançar. Os pares foram se formando, as crianças entrando no sabor da alegria. E, de repente, era o tio dançando com o sobrinho, o mais alto dançando com um baixinho, tio dançando com tia- avó... e o primo tímido, no cantinho, parado, só filmando.

E o meu filho fazia mais um aniversário naquele dezembro, naquele tempo de celestial encontro da primavera com o verão, se entrelaçando nas promessas de vida, com folhas e flores deslumbrantes se banhando de sol, esbanjando vida e arte pela cidade que pulsa, vibra, se atrapalha, se mexe, se espreguiça, toma ônibus e metrô e respira aliviada quando chega mais um sábado.

E as pessoas dançavam. Felizes e achando graça.

E todos tinham na alma, além da beleza, serenidade, companheirismo e sofrimento o valor da identidade. Coisa única, intransferível, com um sinal do sagrado, da garantia da existência.

Não se usava i-pad, i-pod, smartphone naquele tempo. Ninguém ficava com cara de bobo mandando mensagem o tempo todo e fazendo selfie para se mostrar feliz para não sei quem. Quem sabe, mensagens e fotos para os milhares de seguidores e “amigos” virtuais, que supostamente nunca se abraçaram, nunca se olharam nos olhos ou mesmo nunca riram alegremente de uma piada inventada no calor da hora. A gente simplesmente ERA feliz naquela simplicidade, no ficar fazendo os docinhos em casa mesmo, sem ajuda de buffet e sem garçons para servir os visitantes. A gente ia fazendo tudo: fritando os salgados, conversando na cozinha, abrindo um saco de pão sobre a mesa e as pessoas fazendo os seus próprios lanches, sempre naquele gesto espontâneo de viver o momento do encontro, a maior das artes dessa espécie que corre riscos seríssimos de extinção.

A festa foi linda naquela casa da vila Sônia. Na sala, espontaneamente, com os corpos dançantes, as pessoas resolveram demonstrar gratidão à vida, à memória e à beleza do estar junto.

A profunda alegria que guardo da vida é ter tido o privilégio de apresentar tudo isso ao meu filho, o meu Vinícius: a felicidade se materializando, se manifestando numa sala de uma casa muito simples. Os doces sobre uma mesa que foi adquirida para juntar ainda mais a família no momento do casamento do filho mais velho, as pessoas se abraçando, se sorrindo sem economia e dançando obedecendo ao sopro do tempo.

As páginas dos calendários começaram a ser arrancadas com mais rapidez e muitos deles atravessaram o rio da existência.

Muitos, muitos tiveram que partir. Junto da felicidade de terem existido ficou um dissabor monstruoso, inquieto, que me arrepia, me amargura e me constrange: como viver nesses novos tempos, numa era de insensibilidade, de fracasso das relações, de falta de compaixão e de amor à simplicidade do existir?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/08/2014
Código do texto: T4928026
Classificação de conteúdo: seguro