Bolero de Ravel

No início o lamento do oboé em adágio pianíssimo. Solitário e melancólico, igual a um dia de chuva. Só ele fala na melodia. O rufar abafado de tambores marcam o ritmo e os sons vão se definindo com suavidade. Aos poucos, pistons e flauta doce acompanham a cadência do Bolero e a música toma corpo. A sala fica cheia de vida e tem a vibração de uma artéria pulsando.

Vibrante e terna soa a voz do violoncelo que inunda o ambiente onde escrevo. Força de expressão pelo impulso da legião de anjos que embala meu instante de paz. Não penso em nada... Só escuto a cadência melódica, agora, em andamento piano. Os sons se diluem escorrendo entre os dedos da minha mão que escreve.

Um raio de sol baço e oblíquo atravessa a vidraça e as samambaias na janela. A réstia dourada clareia o portão de ferro de um quadro de Marialina na parede. A música se intensifica e o solo de um fagote delineia a melodia. O raio de sol, neste momento, está sobre as ramagens da buganvília que emolduram a entrada do velho casarão. Misturo o que escuto, vejo e escrevo. Glória in Excelsis Deo, pelo dom de sentir o fascínio do que é belo e enleva o meu coração.

Clarinetes se juntam num crescendo constante e a música enche a sala. O sol, mais fraco, escurece a paisagem do quadro e as flores mudam de cor. A tarde também. Choram o canto da despedida. Não estão felizes como eu que sinto a beleza de viver, mesmo com percalços, amando sem medida e correndo contra o tempo. Tenho a alma tranquila, em doação total e sem sacrifícios, porque o amor foi a mola mestra. Cumplicidade de quem se confunde com outro em corpo e espírito. Comunhão. Sem mistérios e subterfúgios. Flechas lançadas no alvo pelo mesmo Arqueiro.

Instrumentos de percussão comandam o espetáculo e fazem meu sangue correr acelerado. A composição aumenta o ritmo em movimentos fortes. As cores do quadro começam a ficar difusas e o sol nem respira mais, mesmo com os acordes da orquestra completa em andamento fortíssimo!

O som vibrante me faz recordar Sevilha... Através do portão de Marialina imagino ver passar belas andaluzas no ritmo quente da música flamenca. Corpos insinuantes de dançarinas num tablado! Os compassos fortes e repetidos do Bolero de Ravel lembram o pisar cadenciado das espanholas animadas pelas palmas dos companheiros de balé! Mulheres de traços finos, com rosa vermelha nos cabelos negros, exibem vestidos justos, cheios de babados, que se arrastam pelo chão no movimento da dança! Marrafas rendilhadas, pulseiras e lenços bordados...

Na penumbra, as cores da buganvília se confundem. Não consigo distinguir os contornos do velho casarão. O nome de Marialina se perde na tela e no começo da noite.

O Bolero, em adágio crescente fortíssimo, transporta a orquestra inteira para a minha sala! Imagino castanholas em mãos agitadas! Braços fortes de cavalheiros esguios vestidos de preto a enlaçar cinturas delgadas na vertigem dos rodopios! Rostos afogueados pela dança! Xales e leques coloridos em movimento! O tac-tac seco do sapateado! Palmas! Gritos! Bravo!

Olé!