O Relógio da Cozinha

Certa vez eu estava atravessando a rua, absorto em meus pensamentos sobre qualquer coisa desimportante, quando percebi que não havia seguido as instruções da minha mãe sobre atravessar ruas com cuidado e estava prestes a ser atropelado por um ônibus.

Naqueles últimos segundos da minha vida eu não vi um flash passando com todas as cenas da minha infância. Na verdade, aqueles foram realmente os segundos mais longos que eu já vivi, só que eu não tive nenhuma epifania sobre o significado da vida, do universo e tudo mais.

Eu não pensei em todos os “eu te amo” que eu deixei dizer. Eu não me arrependi de todas as palavras duras que eu já profanei, nem de todos os momentos que eu deixei de passar com a minha família.

Naquele momento no qual tudo que me separava do desconhecido era o para-choque amarelo e branco de um ônibus eu não pensei em todas as plantas que eu deixei de regar e nem em todos os peixes que eu me esqueci de alimentar.

Quando tudo que eu mais queria era ter algum pensamento profundo sobre o futuro da humanidade e sobre todas as pessoas e lugares que eu deixaria de conhecer, eu não consegui...

Eu só conseguia pensar no maldito relógio da cozinha. Naquele tic-tac incessante que sempre me tirava do sério e me avisava que eu estava atrasado para o que quer que eu fosse fazer. Eu queria pensar em qualquer outra coisa, mas eu não pude tirar da minha mente que o relógio da cozinha sempre esteve dois minutos adiantado e ninguém nunca o arrumou, mesmo passando por eles todas as manhãs e todas as noites.

Mas eu acabei me conformando, porque no final das contas todos nós somos um pouco fúteis e egoístas. Sempre queremos o maior número de canetinhas, mesmo que nunca usemos todas elas, porque ninguém sabe diferenciar a 32ª cor da 34ª. No fim, nós não nos importamos que a maioria das pessoas se preocupem mais com a sexualidade de alguém do que com o bem que aquela pessoa faz. Só nos importamos com nós mesmos e com o que sentimos.

Foi quando eu estava chegando no ápice do meu pensamento sobre o quão inútil aquele relógio da cozinha se tornara com o passar dos anos que eu percebi que ônibus havia freado e o motorista estava me xingando e todas as pessoas da rua estavam gritando comigo.

Saí então do transe e fui andando pra casa. Ao chegar na cozinha eu encarei o relógio e ele me encarou de volta, com aqueles ponteiros idiotas e os seus dois minutos a mais. Não pude aguentar e caí na gargalhada. Como aquele maldito relógio conseguiu tomar os meus últimos (ou quase últimos) momentos de vida?

Então resolvi arrumar as horas dele e talvez ele parasse de me importunar... Depois reguei as plantas e dei comida aos peixes. Talvez, de pouquinho e pouquinho, se eu fosse resolvendo os meus erros, eu poderia arranjar algo melhor do que o relógio da cozinha para pensar na hora da morte.