Entre Aspas

ENTRE ASPAS

Saí de cara lavada, pés descalços, mãos sem anéis. Trazia arrumado na mala as alegrias e o cheiro da casa onde nasci.

No pequeno espaço do meu quarto, cobria com tinta corações entrelaçados, inventava arco-íris em pingo de chuva e o sol se diluía em pássaro azul. Ali era o meu refúgio onde retinha voos dentro das asas. Eu já voava, mesmo engaiolada.

Ao caminhar, alguma coisa cantava em mim na voz do poeta

Meio menina, meia menina, meio mulher.

Senti-me isolada nas veredas da adolescência. Não tive com quem falar sobre as minhas dúvidas. Meus acertos não foram além da minha nata percepção das coisas. Segui o curso do meu rio, olhando-me do outro lado da ponte sem volta, ancorada nas vestes de criança. A convivência com a minha família, proporcionou-me o orgulho de ser ramo da mesma árvore.

Depois disso, exerci a sensibilidade ouvindo músicas, meu acalanto de berço. Li muito. Bons e maus textos. Convivi com toda sorte de escrita, no entanto me perdi num labirinto em busca de saídas para decifrar meu lado adjetivo. As minhas qualidades.

Encharquei-me de informações no desejo de escrever uma história para ser contada num fim de tarde, olhando o mar. Sem bússola nem relógio para estabelecer limite. Onde eu pudesse falar de começos, descompassos e acertos. Aconteceres e buscas parecidas com as minhas. Sem diálogos de palavras mornas nem angústia de mulheres enclausuradas em sala de jantar, onde esperavam as coisas acontecerem e obedeciam ao destino pressuposto.

Só desabafos e confidências. Palavras gostosas de ouvir, escorrendo pela boca. Nenhum ruído além do quebrar das ondas na areia.Talvez falássemos de poetas, embora eu nunca tenha feito um poema. Pouco entendo de redondilhas, tercetos, decassílabos. Sei apenas que haicai é uma alternativa de versos com cinco e sete sílabas. Versos livres, por ironia, são herméticos. Metáforas se perdem no meu raciocínio.

Para mim, poema tem que falar de amor. Endeusar estrelas. Ter cheiro de bogari. Linguagem cristalina de Neruda:

Era a sede e a fome – e tu foste a fruta

Era dor e a ruína – e tu foste o milagre

Precisa da voz mansa de Mercedes Sosa, cantando as mazelas do Chile. O sofrimento dos oprimidos. Escutei e me encheu os olhos de água. O choro lamento que desmorona o corpo. Esfacela. Não se apaga com um lavar de rosto.

Prefiro os olhos garoa. A leveza de Janice Japiassu:

Não tranque o sol do amor – que ele explode

Nem o corpo numa armadilha – ele morre.

Poderíamos falar de coisas banais que me indicassem o Leste onde as coisas começam. Daí então daria início à história que tanto desejo contar.

No momento sinto-me um saco cheio de pedras. Não consigo fixar o pensamento num texto consistente, com princípio, meio e fim. Entre uma decisão e outra, perco o suporte. A memória pesa e não perdoa. As imagens me atormentam enquanto sustento o vazio repleto de nadas.

Preciso abrir gavetas, revolver papéis, encontrar motivos. Descobrir o meu caminho até onde eu posso encontrar.

Quem sabe, assim comece a escrever o meu livro.

(Do meu livro 80 horas)