OS  VESTIDOS RITUAIS DE MINHA AVÓ
     Minha avó que era chamada de Dona Santa, sempre foi alguém especial para mim. E hoje representa um grande ícone em minha vida. Tínhamos muita afinidade e amizade. Lembro-me de nossas conversas no correr das tardes com gosto e cheiro de café... Quantas historias ela me contava, as vezes fictícias, muitas vezes reais... Algumas de sua infância, outras de sua juventude, mas no final sempre acontecia uma coisa: ríamos muito e as tardes banhavam-se numa luminosidade ímpar. Quanta saudade eu sinto de minha avó, minha queridinha...
     E eu nunca me cansava de ouvir e rir novamente, quando ela não se lembrava que já tinha me contado e contava de novo o mesmo fato. Mas se formos parar pra pensar o mesmo fato contado duas vezes tem sempre um dado novo, uma palavra diferente, um cenário diverso... O café às vezes estava mais amargo, outras vezes mais doce... O riso às vezes estava mais feliz, outras vezes ria-se para não chorar... Um pássaro ou um galo cantava... Raras vezes a chuva estalava nas telhas quentes de barro... E assim, sempre era especial ouvir as histórias de minha avó.
     Mas um fato que mais me chamava a atenção era uma superstição ou ritual que ela tinha. Sempre que ia talhar um vestido novo pra ela, chamava-me. Segundo ela, o fato de eu ajudá-la a cortar e costurar o vestido simbolizava que eu mais uma vez faria um outro vestido para ela e assim ela permaneceria mais tempo viva perto de mim. E eu sempre ia ajudá-la. Os primeiros vestidos ficaram muito mal costurados e mal cortados, mas mesmo assim ela usava na esperança de que pudesse viver mais. Com um pouco mais de prática os vestidos iam ficando melhores, mas vez por outra cometia algum erro e o vestido saia um pouco torto, mas nada impedia que ela o vestisse e usasse.
     O tempo passou... De menina virei moça, depois uma jovem, casei e fui embora pra longe e nunca mais pude ajuda-la a fazer seus vestidos...
     Uma vez quando retornei para minha cidade, em visita, corremos a fazer um vestido. Ela ficou muito feliz. Ela dizia: “Martinha, isso significa que eu viverei até que me faças um outro vestido!! Mas um dia, quando eu me for essa máquina de costura será sua”. A máquina era muito antiga, ainda daquelas de pedal ligado a um círculo envolvido por uma correia que a movimentava com o movimentos dos pés. A linha realizava um longo percurso até chegar ao seu destino, mas funcionava muito bem. Ainda consigo ouvir seu barulho logo ali, na sala de minhas lembranças.
     O tempo voltou a passar... As dificuldades me impediram de visitá-la com frequência. Passei anos sem voltar a minha terra natal. Quando retornei minha avó já tinha ficado completamente cega e acamada. Tateava meu rosto para me enxergar. E isso para mim era tristeza e angústia interior... A máquina, sem o constante uso, parou de funcionar. Mas as histórias e a nossas risadas continuavam e eu sabia que, mesmo sem ver a luz, ela por dentro era sol ou nos tornávamos com nossos risos e alegria.
     O último momento que a vi com vida foi dramático... Havia passado as férias junto a ela e a família, mas a hora de partir chegara. Quando disse que tinha chegado o momento de retornar pra minha casa ela começou a chorar... Agarrou-se em minhas mãos e não queria mais soltar. Pedia-me que não a deixasse. E eu lhe dizia: “Vó, eu voltarei e a verei de novo viva e conversaremos e riremos juntas”. Mas ela não soltava as minhas mãos. Tive que me soltar aos poucos, senão perderia o ônibus. Beijei-lhe e sai. Mas seus gritos me acompanharam chamando o meu nome em prantos: “Martiiiiinha!!!” Aquela cena nunca saiu de mim. E essa crônica é um raio de sol imerso em minhas lágrimas...
     Por que não lhe fiz um vestido, mesmo costurado a mão?? Talvez eu tivesse retido a vida em minha avó... Por quê?? Fazer um vestido era nosso ritual de vida, a certeza que nos veríamos mais uma vez...
     Hoje as tardes, as manhãs, as noites, não tem mais a voz nem os risos de minha vó, e eu os queria...      Nem que fosse pra ouvir mil vezes a mesma história e rir mil vezes delas... O gosto e o cheiro de café tem apenas o gosto da saudade, enquanto o vapor quente que flutua sobre a xícara desenha sua face, mas se esmaece rapidamente no ar. A máquina que ela me deu e que eu pretendia guardá-la para compor um museu da família foi vendida sem que eu soubesse num momento de dificuldade familiar financeira, acredito. E os vestidos não fazem mais sentido eu fazer, pois eles não ressuscitarão a minha querida e amada avó...