ROUBEI UMA GALINHA

Um capítulo do meu livro "TÁXI, A VIDA E HISTORIAS DE UM TAXISTA NO RIO DE JANEIRO" Lá vai:

ROUBEI UMA GALINHA

Há muito tempo, tempos antigos, eu nem era taxista profissional

ainda, usava um táxi emprestado de um senhor que

gostava de mim e só trabalhava de dia; eu rodava ilegalmente

à noite. Numa dessas peguei três garotos em Ipanema, na

Praça Nossa Senhora da Paz. Turminha de rua reunida, naquele

tempo isso era comum, a violência era pouca. Pediram-me

para ir para o Recreio dos Bandeirantes, era longe, não

tinha muita construção como tem hoje. Shoppings, condomínios

de prédios e casas ainda estavam mais restritos à Barra

da Tijuca. Para quem não sabe é preciso explicar melhor: Recreio

dos Bandeirantes é uma extensão, um bairro contínuo

a Barra da Tijuca.

O lugar ainda era meio deserto, uma casa aqui, outra

ali, matagais grandes, praticamente uma roça. Morava gente

rica e também gente humilde, pequenas plantações, galinhas

caipiras, coisas assim. Hoje já foram quase todos expulsos,

a expansão imobiliária é grande. Pois bem, como eu ia dizendo,

os três moleques queriam ir para o Recreio. Fiquei

meio intrigado, três garotos menores de idade, só poderia ser

aprontação, até pra cima de mim, vai que eles não tivessem

dinheiro pra pagar a corrida tão longa.

– Ei, ei, ei! O que vocês vão fazer no Recreio dos Bandeirantes?

Moram lá?

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– Não, respondeu um deles, a gente precisa ir e voltar

logo, vai ser rapidinho, nós temos dinheiro moço, nós vamos

pagar.

– Tudo bem! Mas vocês não responderam, fazer o que

lá?

A molecada caiu na gargalhada, ficou um cutucando o

outro pra falar e não se decidiam. Paro o táxi.

– Ou vocês falam ou salta todo mundo, tenho mais o que

fazer, como é que é?

– Tá tranqüilo moço, o meu tio mora lá e nós vamos buscar

uma galinha.

– Buscar uma galinha? Conta essa história direito, que

galinha mané galinha! Desembucha ou salta!

Sentia-me como um pai, interessei-me pelos garotos, sabia

que tinha alguma sacanagem por trás e eles lembravam

a mim mesmo naquela idade, aprontei muito nos tempos da

Rua Paissandu. A bronca era séria, mas só da boca pra fora.

– É só buscar uma galinha mesmo, juro! Tá valendo um

beijo na boca.

– Não tá dando pra entender, galinha, beijo...

Até que o moleque que estava calado resolveu falar.

– Não é nada disso, é que meu amigo queria beijar uma

gatinha, ela disse que só se ele arranjasse uma galinha viva,

ele nunca beijou ninguém...

Risos.

– Ela jurou que beijava na frente de todo mundo se ele

viesse com a galinha.

Risos.

– Pára com isso rapá! Que nunca beijei ninguém o quê!

– Qual é? É mentira minha? Beijou nada!

– Calma, eu levo vocês lá, mas aonde vão arranjar uma

galinha agora de noite?

– Meu tio mora lá e tem muita galinha.

Achei aquele papo todo o máximo! Gatinha tinhosa, tava

fazendo o que queria com o moleque, essa ia ser daquelas

que faz homem de gato e sapato. Irmanei-me com o garoto e

resolvi dar uma força, mas tinha uma condição.

– Eu levo, mas quero ver a grana, não é barato, é muito

longe e não quero saber de maltratar a galinha.

– Aqui, ó! Temos dinheiro sim.

– Tá legal, mas não vai trazer na mão não, vai ter que

carregar dentro do saco, tenho um aí atrás, isso aqui não é

galinheiro.

E fomos nós, a molecada zoando um ao outro, virei criança,

fiquei com a idade deles, riam muito e botei o rádio nas

alturas. Entrei pra turma, o trabalho virou diversão, acho

mesmo que nunca deixei de ser moleque.

Chegamos lá e era no fim do mundo, um terreno com a

casa grande ao fundo e umas casinholas ao lado. Abri o portamalas

e entreguei o saco pro garoto, ele foi atrás da galinha,

não entrou no terreno da casa grande, entrou pela lateral e sumiu.

Não deu nem cinco minutos e sai o infeliz correndo com

alguma coisa dentro do saco e um estardalhaço atrás dele.

– Peguei! Vamos embora, olha o cachorro!

Era um enorme vira-latas latindo muito atrás do sacana.

Eu, em pé do lado de fora pulei voando para dentro do táxi,

parecia que o vira-lata tinha dez metros de altura e vinha disposto

a morder mesmo. O garoto entrou quase que pela janela

do banco de trás. Liguei o carro ao mesmo tempo em que

subi meu vidro e saí rapidinho. O cachorro correndo atrás

e querendo morder o pneu, mas não deu pra ele. Desistiu

depois que embalei. Foi a maior algazarra dentro do carro, a

galinha não se conformava.

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– Que malandro é você? Por que não prendeu o cachorro?

Precisava dessa correria?

– O cachorro não é meu, ele tava solto e não me reconheceu.

– Como solto? Teu tio cria galinha e deixa o cachorro solto?

– Não é do meu tio, é do vizinho, ele tem um cercadinho

onde prende as galinhas de noite, o cachorro me conhece,

mas estranhou.

– Você roubou a galinha? Enlouqueceu? Quer levar tiro?

Vamos voltar pra devolver.

– Faz isso não! Meu tio me mata, meu pai me arranca a

pele!

– Olha aqui, moleque, safado, sem vergonha...

Não tinha como sustentar a bronca, era uma aventura e

ainda tinha o papo do beijo.

– Tá legal, tá legal! Vamos levar a galinha, mas eu quero

ver se existe beijo mesmo, senão vou entregar vocês pros homens.

E olha só, se deixar essa galinha sair do saco eu vou te

matar de pancada, vocês vão limpar o carro com a língua.

– Tem erro não! Tá limpo! Aumenta o som?

Eram quase 23 horas, essa história tinha durado bem

uma hora e meia e a turma ainda estava na praça, tava todo

mundo esperando, tinha até mais gente que antes, parecia

porta de igreja em dia de casamento, a molecada rindo adoidado.

Pagaram a corrida de maneira afobada e saltaram com

o saco, saco velho, imundo. Eu fiquei só olhando...

Um deles abriu o saco e jogou a galinha pra cima, coitada!

Fiquei chateado, a bichinha saiu desembestada praça

adentro, a galera fazia a maior barulheira, ninguém acreditava,

estavam se divertindo a valer até que começou o coro:

– Beija! Beija! Beija!

Nessa hora eu saltei, claro! Tinha que ver essa cena. De

repente a turma abriu espaço e no centro estava a tal garota.

Bonitinha a safadinha, meio sorriso no rosto, até eu

estava ansioso, queria ver, se ela não cumprisse a promessa

acho que me juntaria ao coro dos descontentes. Esqueci a

minha idade, que não conhecia ninguém ali, não me dei conta

que voltara no tempo num passe de mágica. Fiquei igual

aos meus 16, 17 anos, na Rua Paissandu. Imediatamente

surgiu o flash-back. Eu havia estado internado numa dessas

instituições por cerca de dois anos e fugi, já faziam dois anos

que eu não aparecia, soube que havia saído no jornal que um

tal de Maluquinho, era meu apelido, havia morrido a tiros na

Lapa, saiu até foto no jornal do defunto meio deformado, só

podia ser eu, foi o que todo mundo do bairro do Flamengo

pensou. Disseram-me que a Dona Olga Renha mandou rezar

uma missa de sétimo dia para mim, e eu ali de novo, a turma

desentendida com minha aparição, alguns me deram roupas,

às vezes emprestavam, o leitor está pensando o que? Eu só

andava na moda, não pagava mico não, arrumava namoradas,

gatinhas da classe média. Deixei muito pai e mãe preocupadíssimos.

Aceitavam-me às vezes mas, de certa maneira,

eu não era recomendável. Foi um tempo dos mais felizes da

minha vida. Eu pensava ou fingia que era igual a todos ali,

precisava me sentir normal, era a maneira que encontrava

de acordar no outro dia e respirar a vida, mesmo que tivesse

dormido dentro de um carro qualquer. Sabia abrir qualquer

carro, usava um barbante para laçar o pino das portas e destravá-

los. Nunca roubei nada, talvez um badulaque qualquer,

usava os carros como dormitório e até me lembro que tinha

uma chave mestra que abria qualquer carro da marca DKV

que hoje não fabrica mais.

– Beija! Beija! Beija!

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A gatinha esperando, a turma zoando e o bobão que tivera

a coragem até de roubar uma galinha arriscando levar

tiro ficou ali parado sem saber o que fazer. Deu vontade de

empurrá-lo. Sabendo que sua virilidade diante da turma estava

em jogo e também que essa era sua grande vontade, o

primeiro beijo, o moleque desemperrou, chegou junto e mandou

ver, a maior gritaria, uma farra. Beijo longo, suado, não

acabava, me deu até vontade de fazer poesia:

O amor,

para quem precisa de amor,

é preciso dar amor,

a quem não tem amor.

Não esperei o final, não era importante, mas eu estava

nas nuvens. De ajudante de ladrão de galinha eu passara a

ser ganhador de uma energia suficiente para viver feliz na

dura ralação de um taxista durante umas duas semanas. Pego-

me de vez em quando sonhando com aquela época, sonho

que será possível reviver aquele ano, mas não! Caio na real,

iludo-me como qualquer um, todo mundo tem ilusão, rico ou

pobre, ladrão ou santo, é um direito, uma opção. Aprendi

que podemos sonhar alguns dias, mas ficar neste estado é

caminho certo para depressão. Deve ser por aí a explicação

de tanta cirurgia plástica, todo mundo quer ficar novinho em

folha, mas o que está em volta é novinho em folha?

Melhor seguir, não precisa ser amargo, apenas o mais realista

possível porque as oportunidades surgem. Não conheço

ninguém que, pelo menos uma vez no dia, não tinha tido

uma oportunidade nova para remover escombros e vislumbrar

um bonito céu azul qualquer. São palavras do amigo de

um amigo meu, que eu endosso, este tipo de cheque sempre

tem fundos.

gino santos
Enviado por gino santos em 13/09/2014
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