Crônicas de Chronos II

II

Um banco branco, de praça. A sombra de uma copa. Um calhamaço de papéis brochurados sobre minhas mãos. Filetes de luzes que escapam pelas frestas da copa cintilam sobre meu corpo, sobre meu livro.

Uma criança senta ao meu lado.

Não lhe dirijo a palavra. Ela parece não se incomodar que eu esteja ali. Já para mim, não parece que ela me seja tão indiferente.

Retiro meu olhar periférico da criança e tento retomar meu olhar frontal nas letras que me aguardam neste calhamaço que seguro.

Enquanto luto contra mim mesmo para manter fixo meu olhar, na Times New Romam, a criança parece feliz ao retirar de seu bolso um chocolate caseiro, embrulhado em papel comum. Não há marcas sobre ele. Um papel branco. Parecem bombons vendidos em quermesses, das paróquias de interior. Bombons de melaço?! Penso eu, enquanto infrinjo mais uma vez minha disciplina de leitura.

A criança desembrulha sem pressa seu chocolate, lambe os dedos que já tocam o doce, como se antecipasse com prazer o ápice do sabor do doce inteiro. Não parece ter vergonha se isso é sujo ou falta de educação.

Será que suas mãos estavam limpas? Pensei! Mas este questionamento natural e corriqueiro não parecia lhe importar. Suas mãos pareciam ser envolvidas do mais puro antibacteriano da face da terra, a ingenuidade.

Seus olhos, ao perceberem o doce desembalado já sentiam o sabor caramelizado daquele alimento. Se o chocolate sumisse naquele momento, seus olhos seriam capazes de fazer um retrato falado do sabor que avistava. A certeza da delícia que lhe esperava.

Suas mãos, como de deuses bondosos, aproximavam tal delícia de sua boca. Seus lábios, abriam-se em 'A', como uma concha a receber sua pérola. Não havia pressa, mas ardia o desejo. Seus olhos fecharam-se. Inebriados da ansiedade pelo gosto que, em breve, lhe definiria as sensações.

Percebi que sua vontade era de comê-lo inteiro. No entanto, mordeu-lhe, retirando apenas um pedaço. Talvez uma forma de prolongar o prazer. Não experimentando-o soberano, mas alimentando-se do prazer em pequenas doses.

Seu mastigar era como se não houvesse problemas no mundo. Ou horários a se cumprir. A certeza de que aquele momento, era o momento mais importante. Tive a impressão que enquanto a criança mastigava, os pássaros fizeram silêncio. O vento parou seu correr. A copa organizou seus cintilantes raios de sol. Tudo isto para ver o menino se deliciar com seu chocolate.

A repetição deste prazeroso movimento e o chocolate cumpre sua função. Delicia o garoto com sua cremosa existência. Não concluindo seu deleite, o garoto pega o papel que embalava o chocolate caseiro, traça sobre ele a língua, retirando qualquer resquício de doce que pudesse significar um desperdício.

Conferindo que a embalagem de papel, semelhante a papel de pão, estava limpa, não demorou a forjar-lhe em dobradura. Uns movimentos aparentemente aleatórios, definiam o papel sob a destreza das mãos daquele garoto.

Voltas, dobras, marcas, vincos...e vi solidificado nas mãos do menino, um avião de papel.

O garoto olha para cima, como se seus olhos contemplassem com clareza o movimento do ar, distinguindo sua direção e velocidade com precisão. Olhos de águia, talvez. Sem titubear, o menino orienta seu braço em um movimento elíptico e lança sua criação ao vento. Uma forma de concluir seu prazeroso momento de viver a vida intensamente em frações de segundo.

Ouvi um “crec”. Alguém pisou sobre um galho seco ao meu redor. Percebi que meus olhos já haviam se perdido da folha branca com Times preto, estavam fixos no horizonte, desfocados da visão. Era capaz de sentir o gosto daquele doce em minha boca.