AMOR SENIL: AMOR CONSCIENTE E VERDADEIRO

Já faz alguns meses que tento escrever essa crônica... Ela começou a ser rascunhada em meu pensamento, quando a fronteira da realidade tocou minhas reminiscências...

Voltava de um compromisso no final de semana ligado aos meus estudos, acho que de uma palestra ou seminário, já não me lembro. Ao retornar, aproveitava o tempo do percurso para ler um livro jurídico. Em certo momento, tendo as “minhas retinas tão fadigadas”, resolvi descansá-las na paisagem para além do vidro da janela. Foi quando me deparei com a cena.

Era um casal de idosos que passeava, pela rua principal, de mãos dadas. Mas não foi apenas esse gesto que me chamou a atenção: eles pararam, abraçaram-se e beijaram-se num amor invejável... Havia felicidade resplandecendo em seus semblantes... Mas a velocidade do ônibus impediu que eu visse um pouco mais. No entanto, em minhas retinas, aquela cena era uma imagem impressa e fixa, talvez um passaporte, pois nada mais reparei, porque o pensamento viajou ao passado.

Lembrei-me de minha avó. Ela tinha oitenta anos quando um senhor quase da mesma idade se apaixonou por ela. Eu que nunca tive um avô por perto e sonhava com isso fiquei cheia de felicidade e expectativa. Ele queria casar com ela e preparava-se para pedi-la em casamento a meu pai. Minha avó uma vez segredou-me que estava preocupada, pois acreditava que com aquela idade meu pai não permitiria, pois acharia uma insanidade. Eu lhe disse que ela vivesse o que queria e que fosse feliz. Eu gostava muito do seu João, tão educado, tão gentil, correto e amável. Eu já o considerava meu avô. O avô que eu jamais tive. Ele nunca havia casado na vida. Era o que chamam naquela cidadezinha interiorana de rapaz velho. Minha avó trazia a vivência de poucas histórias de amor e ainda infelizes. Havia passado uma imensa parte de sua vida sozinha. Eles estavam muito felizes com a perspectiva do casamento e eu também.

Num final de tarde, como todos os dias, eu costumava passar na casa de minha avó para vê-la e saber se precisava de alguma coisa, e até ficava lá um pouquinho para lhe fazer companhia e conversar um pouco. A casa de minha avó era pequena. A porta da frente não era inteira. Era dividida ao meio de forma horizontal, assim ela podia fechar a parte de baixo e deixar a parte de cima aberta, como uma janela. Tal porta era meio empenada e quando abríamos, atritava no chão e fazia um barulhão. Nesse dia, cheguei e como sempre eu já ia empurrando a porta, quando me deparei com uma cena que jamais esqueci.

Os dois estavam sentados na sala, cada um em uma cadeira, um de frente para o outro. Eles estavam olhando-se, rosto bem próximo um do outro. Pareciam hipnotizados. Parecia até que um navegava na alma um do outro e os portais para chegarem a esses oceanos particulares eram aqueles dois pares de olhos azuis. Não, as rugas de seus rostos pareciam não existir ou eles as amavam. Foram se aproximando, se aproximando, e já iam beijar-se, quando sem querer sustentei-me na porta e ela rangeu no chão de cimento histericamente... Eles ergueram-se de súbito, assustados, envergonhados, sem saber pra onde ir ou dizer. Assustaram-se como os pássaros que revoam ao menor sinal de ameaça. Para tranquilizá-los tive que fazer de conta que acabara de chegar e nada vi. Cumprimentei-os e fomos tomar um café.

Pouco tempo se passou e seu João caiu doente. Uma trombose lhe paralisou metade do corpo sem que conseguisse a recuperação. Passou efêmero tempo no hospital e pediu pra ir pra casa, pois se fosse para partir para eternidade que fosse no ambiente familiar e não naquele local que o deprimia. Em poucos dias ele piorara e um dia, na eminência da morte, pediu que todos que lhe estimavam fossem lá se despedir. Minha avó pediu-me que fosse com ela até a casa onde ele morava. Fomos. Procuramos, procuramos, mas não encontramos a residência. E já era noite quando voltamos desiludidas.

No outro dia soubemos que ele morrera e no momento próximo a esse fato ele procurava entre os inúmeros presentes uma pessoa. Os parentes perguntavam-lhe: “É Fulano? È Ciclano? É Beltrano?”. Ele balançava a cabeça negativamente e continuava a busca até que seus olhos se turvaram e ele não os conseguiu mantê-los mais abertos, pois a vida escapava-lhe por todos os poros, como a areia seca que ao ser apertada na mão escapa pelos dedos.

Era a minha avó que ele procurava e procurou sem encontrar. Eu tenho certeza. Quando soubemos do fato já era inicio de tarde e desesperadas fomos ao enterro sem saber exatamente a hora dos acontecimentos. Chegando na igreja soubemos que o cortejo já havia seguido ao cemitério. E ao chegar nesse, seu João já havia sido enterrado. Apenas colocamos as flores sobre seu túmulo orvalhadas de nossas lágrimas. Consolei minha avó e a abracei bem forte. Quis sorver-lhe toda a dor para que não sofresse, como se fosse possível. Ela havia perdido seu amor e eu meu já querido e amado avô.

Voltamos juntas, em silêncio, não percebíamos as ruas, nem o chão que pisávamos... Parecia que o vazio nos estrangulava por todos os lados. A cor negra do vestido de minha avó tomara conta de seu semblante, de sua alma e se apoderava também de mim. Sim, a cor negra era a escuridão que precisávamos para esconder nossas lágrimas, nossa dor, do mundo que nos espiava querendo perscrutar nossas feridas... Era a cor negra que impunha a distância que precisávamos para que ninguém conseguisse tocar nossos corações despedaçados... Era a cor negra que nos aquecia como um cobertor e nos protegia do inverno que assolava nossas almas, mesmo naquele verão nordestino sem fim.

Minha avó nunca mais teve ninguém, ainda que alguns anos depois tenha se apaixonado novamente. Mas era uma paixão só dela. Ele nunca soube de seus sentimentos, pois ela jamais confessara. No entanto, com sua vivência, ela me ensinou que nunca devemos desacreditar do amor, que sempre é tempo de amar. Mas o amor só acontece para os que acreditam, pois todo amor verdadeiro é como um milagre: nos cura as feridas da alma e até do corpo, nos culmina de vida, transforma nosso olhar sobre o mundo, pois tudo parece mais iluminado e brilhante, as cores são mais vibrantes, o vento sempre nos traz ou leva um beijo, e a brisa é sempre um abraço amado e acolhedor. Respiramos amor e nossa vida recebe um acréscimo de eternidade.

Aquele casal de idosos felizes na rua principal, um fragmento do presente que instantaneamente também virou passado, lembrou-me de minha avó, minha amada vozinha, que já não existia há quase seis anos nesse plano terrestre, e da felicidade que vivera em companhia de seu João. O amor na melhor idade é um fato que a sociedade precisa aprender a respeitar, pois as pessoas idosas na grande maioria das vezes estão lúcidas e capazes de viver o amor e tem esses direito. Criaram seus filhos, muitas vezes ajudaram a criar seus netos, construíram seu patrimônio e tem o direito de viverem suas vidas da forma que desejarem.

Eu, naquele momento, perguntei-me: Quem um dia me amará a tal ponto que não enxergará as rugas que surgirão em minha face ou ainda que as veja também as ame? Quem habitará o oceano de dentro de mim e permitirá que eu navegue e me perca no seu? Quem me abraçará e beijará pelas ruas?Quem me procurará com o olhar na hora derradeira, até que seus olhos se turvem e o coração pare de cantar dizendo que me ama. Não sei, nem posso imaginar, pois é um tempo que me parece distante e que nem sei se irei alcançar. Mas como a minha avó, eu jamais deixarei de acreditar no amor, enquanto eu viver, enquanto eu respirar.