Cotidiano

Despertava às seis, porém só acordava mais tarde. Colocava uma música qualquer no notebook que se encontrava sobre seu baú, próximo a cabeceira da cama. Pulava, cantava, dançava. Sorria para o sol aparecendo em sua janela, para a fresca brisa da manhã, para as flores molhadas pelo orvalho que surgiam em seu jardim.

Ainda sonolenta, apesar de seus esforços para afastar o maligno torpor, divagava sobre a vida, a própria felicidade, sua "liberdade" limitada... Coisas bobas, se analisadas por qualquer um, mas demasiada importantes à ela, que buscava entender a si própria e a projetar em sua vida valores preciosos. A música ainda passava, como uma trilha sonora aos pensamentos perdidos entre milhões de sinapses, guardados no peito, por um coração palpitante e sedento de vida. Mal ela os entendia. Ficava ainda mais perdida.

Em algum momento, saia de seu transe e com um salto, deixava a posição filosófica e esbaforida, se arrumava. Em pouco tempo estava pronta. Bem, era isso o que achava, até dar de cara com seu maior desafio: o espelho.

Quando foi que ficara tão estranha? Mal se reconhecia, por dentro e por fora. Suas mãos eram marcadas por incidentes que a presenteavam com manchas roxas e por vezes cicatrizes que jamais a deixariam. Assim como suas pernas. Roliça, tentara de tudo... Havia algum empecilho que a impedia de perder os quilos que tanto desejava. Mas qual? Baixinha, se sentia constrangida ao conversar com pessoas muito altas. Seria esse o motivo de tanto medo de altura? O cabelo não brilhava, insistia em ser rebelde! Como se quisesse exigir à Deus e ao mundo a sua abolição. Deixe-me livre! Deixe-me livre! Não a quero embelezar! Assim também eram suas sobrancelhas que insistiam em ser tortas, ou o nariz que era grande demais, caído demais, ou os olhos que já haviam sido classificados como "de peixe morto", não sabia ela o motivo, no entanto compreendia o defeito. A pele, oleosa ao extremo, sempre trazia novas espinhas pela manhã, que manchavam seu rosto... Outrora seriam marcas de batalhas, mas havia se deixado vencer há tempos. Faltava-lhe beiços na boca de formato estranho. Sua mãe dizia ser similar a um coração, mas ela sabia que era apenas um falso elogio. O rosto, redondo demais, avantajava suas bochechas, como um lembrete diário a todas as pessoas sobre seu porte físico. Os braços, de um tecido adiposo sem igual, eram marcados por um morro cada, deformando-os. Mal podia acenar sem que rissem de sua pele balançando. Os dentes eram grandes demais e em seu sorriso, pela falta de lábios, via-se mais sua gengiva do que eles. As olheiras! Ah, insistentes olheiras! Por mais que dormisse, por mais que descansasse, elas estavam ali. Grandes coxas que a impediam de usar shorts e que traziam um transtorno ao vestir calças. Dedos tortos, unhas quebradiças, pés calejados, deformados, cabelos no buço...

Uma batida na porta. Sua salvação.

Prontificou-se em ajudar a irmã mais nova. Deu-lhe um café da manhã reforçado, separou-lhe um lanche para o intervalo. Luxo que não permitia em sua vida. Deveria emagrecer, de um jeito ou de outro.

Abriu o portão de sua casa e rezou uma prece silenciosa antes de passar por ele: Dai-me forças para aguentar mais um dia. Uma lágrima silenciosa tentou escapar, mas logo foi suprimida. O sinal tocou indicando que teria mais dez minutos para chegar ao seu destino. Durante a curta caminhada, sua irmã conversava, sozinha, já que estava indisposta a respondê-la, não por falta de educação ou amor, mas por cansaço de viver.

Deixou-a no destino e caminhou sozinha até o seu. Um coração moribundo, mas ainda assim ativo, ainda assim vazio... Cansado de viver por outros, e menos por si só... Viu a porta por onde passaria e vestiu seu melhor sorriso. Havia alguém que a entendia, que sabia falar o que ela queria ouvir, que sabia, com muita proeza, desempenhar o papel de amigo.

Suspirou na soleira porta, momentos antes de entrar.

Dai-me forças, repetiu.

Viu-o.

Finalmente havia motivos para sorrir.

Despertava às seis, porém só agora acordava.