Maputo ... 42 graus!

Aeroporto de Maputo, Moçambique, 1984..... Desembarco do avião da Varig sob um calor de mais de quarenta graus, entre senhores de terno e gravata,jogadores de futebol do Brasil que vão disputar um jogo contra a seleção local, alguns asiáticos de fisionomia fechada, mulheres africanas em roupas tribais e me dirijo a imigração, só para descobrir que o visto de entrada,prometido pelo governo socialista para a minha chegada, simplesmente sumiu.... Obviamente,sem a "visa",não me é permitida a entrada em Moçambique e sou conduzido por dois oficiais da imigração para um local isolado no recinto do aeroporto, onde terei que esperar até que a situação se resolva.... Em síntese: estou detido pelas autoridades de imigração moçambicanas até que o tal visto apareça.... Posso circular pelo terminal,mas acompanhado de perto por um militar moçambicano, armado com uma AK47 enferrujada, que anda para lá e para cá, sempre por perto e tentando dar na vista que não está me vigiando.... Não existem lancherias abertas no local, mas sou conduzido até um precário restaurante,onde sou o único fregues presente e descubro que a parca refeição que me oferecem é cortesia das autoridades locais. Mais tarde, sou visitado por um policial negro também armado, com o rosto marcado por profundas cicatrizes tribais, que quer saber a história do visto perdido e o que estou pretendendo fazer em seu país. Esclareço que não fui eu quem extraviei o visto, e sim as autoridades locais, pois segundo o combinado por contrato, o tal documento de entrada que permitiria a minha entrada no país, deveria estar a minha espera em Maputo. Também digo que sou convidado do governo Moçambicano para trabalhar como assessor junto ao Ministério da saúde local. O sujeito parecia estar desconfiadíssimo,mas escutou com atenção e prometeu providências imediatas para dar um jeito na minha situação.... Assim sendo, resta esperar as tais providências e vamos ver o que acontece... Entabulo conversa com um dos militares que perambulam por ali e fico sabendo que o país encontra-se em guerra civil: de um lado, a Frelimo, a Frente de Libertação de Moçambique, de orientação socialista e apoiada pelos países do Pacto de Varsóvia e de outro, a Renamo, a Resistência nacional Moçambicana, que conta com o apoio direto da temida vizinha Africa do Sul e dos países da Otan, expressando no sul do continente africano, uma versão tropical e calorenta da guerra fria. Segundo o soldado com o qual converso, os "bandidos armados" da Renamo são capazes das maiores atrocidades contra a população local e todo o cuidado é pouco. O militar,um pouco menos desconfiado que o policial que me interrogou antes, mostra-se preocupado com a confusão reinante na Namíbia, onde soldados cubanos encontram-se em luta aberta contra as forças da África do Sul, e principalmente com a situação interna do seu país, que está metido em uma sangrenta guerra civil que parece não ter fim. Perambulando pelo aeroporto,assisto a chegada de aeronaves da Aeroflot repletos de cidadãos do bloco socialista, principalmente soviéticos, que parecem não necessitar de vistos,pois passam olimpicamente pelos oficiais da imigração moçambicanos, se dirigem diretamente para os portões de saída do aeroporto e vão embora rapidamente pela poeirenta via de acesso a cidade de Maputo aboletados em alguns ônibus decrépitos. Depois de quase três dias detido na imigração, recebo a visita de um Secretário da Embaixada Brasileira, que resolveu a questão elevando a voz e exigindo a solução imediata do impasse, pois "este cidadão brasileiro tem que sair daqui imediatamente" o que me deixou bastante surpreso,acostumado com o descaso com que somos tratados dentro do nosso próprio país pelos governantes e autoridades. Resumindo: em meia hora, estava de posse do tal visto, trazido apressadamente por alguém do Ministério da Saúde Moçambicano, com o passaporte devidamente carimbado e dentro de uma viatura oficial com malas e bagagens rumo ao centro da capital pela esburacada rodovia, repleta de veículos militares, soldados fortemente armados, bicicletas, pessoas..... O motorista quer saber o que acho do seu país,o que me deixa sem saber o que dizer, pois ainda nada consegui ver. Finalmente, estamos na capital e a surpresa é agradável.... Ruas largas, avenidas arborizadas,mas com um certo ar de decadência.... Alguns sinais da guerra estão presentes: marcas de metralha em algumas paredes, lugares interditados pela suspeita de minas, velhos tanques sobreviventes da II Guerra em algumas esquinas, talvez cedidos pelo exercito soviético, o que me confirma o motorista, empolgado com a ajuda que o "país irmão e amigo" oferece ao povo de Moçambique. Sou depositado em frente ao meu local de alojamento, na rua rebatizada depois da independência como Avenida Mao Tse Tung e descubro que fui alocado no décimo andar, mas os elevadores não funcionam.... Com a ajuda de um funcionário do lugar, chego até lá e trato de me acomodar. O lugar é simples e temos uma pequena sala de entrada, quarto com armário embutido, cama, criado mudo e um banheiro com uma enorme banheira esmaltada... No andar onde estou alojado, temos uma cozinha comunitária, um grande salão para conferência, festas e recepções, uma lavanderia e vários apartamentos onde se alojam os "cooperantes" , como são chamados os estrangeiros que vem para cá trabalhar. Tenho como vizinhos dois médicos cubanos, uma enfermeira do Zimbabwe, um brasileiro, também médico, também gaúcho de Santa Cruz do Sul, terra de Érico Veríssimo e que lá está trabalhando com os Médicos sem Fronteira... Ah.... também colorado..... Também residem ali duas colegas italianas, Psicólogas e uma sueca, que trabalha no Ministério da Educação como Psicopedagoga além de uma arquiteta brasileira, baiana da gema, que circula por Maputo em curtíssimos "shorts" , escandalizando e encantando os naturais da terra, ainda presos a códigos morais herdados dos antigos colonizadores portugueses. A baiana conta que já recebeu propostas de casamento e infindáveis cantadas,mas não é o que quer no momento.... Está aquí de passagem,pois vai em seguida para a cidade de Beira, onde é responsável por um projeto habitacional. Espantado, descubro que me foi cedido sem maiores explicações, um Land Rover para os deslocamentos pela cidade e um documento que me permite abastecer de nafta sem restrições, mas tenho uma grande dificuldade para me acostumar a dirigir na chamada "mão inglesa". Assim sendo, conduzo o pesado veículo cautelosamente pelas movimentadas ruas do centro de Maputo,no meio de uma confusão de carros, veículos militares,motos, bicicletas e pedestres. Sou parado a todo o momento para verificação de documentos e noto que um destes sujeitos olha cuidadosamente o meu passaporte de "cabeça para baixo".... Também sou abordado na rua por pessoas que querem comprar dólares e um sujeito que quer comprar os meus sapatos.... Vou até a Embaixada brasileira, na Avenida Keneth Kaunda, pois necessito de mais documentos.... Fico sabendo que o Embaixador anda preocupado com a segurança dos brasileiros que residem no país e que existe um plano de evacuação se as coisas ficarem complicadas. Não sei.... acho isto meio inviável, mas pode ser apenas a natural desconfiança de um brasileiro que se acostumou a não ser bem tratado como cidadão dentro do seu país...... Pois bem.... Hospital Central de Maputo..... Atendimento ambulatorial noturno aos pacientes que me são encaminhados pelo setor de psiquiatria, cuja Diretora é uma simpática portuguesa de meia-idade .... Lembro do apenado que me foi encaminhado, um muçulmano ao qual foi amputada a mão direita por furto.... Da mulher com uma crise interminável de soluços e que ficou encantada por poder conversar quase uma hora comigo.... Do soldado com neurose de guerra, preso a tremores incontroláveis... daquele negro esquálido, encapsulado em uma esquizofrenia paranóide, com o qual conversei através de um interprete... Me abalou ter contato direto com pessoas famintas, aterrorizadas pela guerra, destroçados emocionalmente.... Vi, pela primeira vez na vida,uma pessoa ferida por tiros de metralhadora... Lembro do Médico moçambicano comentar que os aviões sul-africanos estavam a cinco minutos de voo da capital e que a Matola,o bairro onde ele residia,havia sido bombardeado a poucos dias atrás.... Onde andará aquele senhor, sempre impecavelmente vestido, engravatado, mas de pés descalços? Sou designado, junto com uma colega belga,para atender aos pacientes do Hospital Psiquiátrico do Infulene, situado na periferia da capital. Descubro que já que tenho a disposição o Land Rover, sou o responsável por levar também alguns funcionários do hospital de carona... Atrás, um jipe militar com alguns soldados, pois parece que o lugar não é muito seguro, pois acontecem ações de guerrilha pelas redondezas. Atravessamos os bairros periféricos de Maputo ainda de madrugada e sou orientado por um dos caronas, pois não sei como chegar até lá.... Lembro de ler em um muro, uma frase que me deixou preocupado... Acho que dizia mais ou menos assim: " Em Moçambique, todo o estrangeiro é um alvo militar...." No Hospital do Infulene estão internados cerca de quinhentos doentes psiquiátricos e a equipe está muito desfalcada,pois quase não existem profissionais habilitados para lidar com a situação. Descubro que somos poucos.... Dois médicos cubanos, eu e a colega belga,um enfermeiro oriundo do Zimbabwe e três atendentes de enfermagem.... Os meios disponíveis para tal "enfrentamento" são quase inexistentes.... Faltam camas, lençóis, remédios e comida. Os arquivos desapareceram, não existe nenhuma possibilidade de atendimento a qualquer emergência ou urgência que venha a acontecer.... Em compensação, descubro que temos quinze aparelhos de eletroconvulsoterapia á disposição!! Nestas condições, só temos a opção de começar a fazer algo imediatamente.... Com o que dispomos.... E começamos! Inacreditavelmente, fico sabendo que devemos encerrar apressadamente os trabalhos antes das quatorze horas! Descubro que, na periferia de Maputo, a guerrilha tem horário para começar!!! Fantástico! De qualquer maneira, com muito esforço da equipe e com o auxílio da comunidade local, os internados começaram a ter algum tipo de atendimento, embora precário... De volta a cidade, verifico que estou sem cigarros... O pior é que não consigo achar em parte alguma. Só existem no mercado paralelo, a "candonga", onde é possível encontrar qualquer coisa. Mas, parece que só se consegue "entrar" e negociar na candonga, se temos os contatos certos... Pois em conversa com um cidadão do qual "filei" um cigarro e que sentou-se comigo a mesa do restaurante onde fui almoçar, este ficou de tentar arrumar alguma coisa... Para minha surpresa, alguns dias depois, ao chegar do trabalho, estava a minha espera uma enorme caixa contendo vários pacotes de cigarro, o que me aliviou bastante por um bom tempo! Nunca mais vi o tal cidadão, mas segundo a descrição que fiz do mesmo a algumas pessoas, o tal sujeito seria um importante membro do Partido Comunista Moçambicano e que estaria envolvido com a "candonga", o mercado "negro" de Maputo. Bendito Partido Comunista Moçambicano e a sua "nomenclatura".... Curiosa Maputo..... Uma quase absoluta falta de tudo....contrastando com a abundância que vejo em lojas exclusivas para estrangeiros, acessíveis somente para aqueles possuidores de moeda forte... dólares, libras, escudos,francos.... As vezes, tomado pela imperiosa necessidade de achar algum artigo que necessito, ingresso nos templos de consumo e aliviado, consigo uma coca -cola a preços exorbitantes para os meus padrões brasileiros de consumo... Difícil a minha adaptação a isto... Ter como comprar,mas não ter onde, a não ser nestas lojas especiais,vedadas para os moçambicanos. Talvez precise me reciclar para transitar mais facilmente nesta sociedade que saiu recentemente de uma situação colonial opressiva e predadora e que tenta enveredar confusamente para caminhos diferentes,mas também confusos... Espero que o futuro traga a estas pessoas e a este país algo melhor.... Os colonizadores portugueses não tiveram em nenhum momento, a preocupação de formar entre os locais, quadros técnicos e diretivos.Quando abandonaram o país após a independência, a situação tornou-se caótica,com o colapso quase total de todos os serviços públicos,o que forçou os novos governantes a buscar o auxílio dos chamados cooperantes estrangeiros e apoio financeiro,militar e logístico dos países socialistas, notadamente da ex - União Soviética. De qualquer modo, sinto saudades de lá... Fiz amigos entre os cooperantes estrangeiros e também entre os locais, com os quais mantenho contato eventualmente. Fico satisfeito em saber que a pequena nação africana parece estar encontrando aos poucos o seu caminho e a sua identidade , sem a adesão compulsória a modelos e regimes alienígenas estranhos a cultura e a índole popular moçambicana. Hoje,os tempos são outros... Mas... Há um longo caminho a ser percorrido pelas jovens nações.... Vejo o meu país,depois de tantos anos , sofrendo as nefastas consequências dos anos de chumbo, e tentando solidificar a duras penas a democracia que tanto almejamos. Não somos tão diferentes dos jovens países africanos,recém independizados... Também temos muito o que buscar e fazer por aqui. Se por lá faltava a coca-cola, por aqui não temos a segurança que precisamos,a educação que queremos e merecemos e a saúde pública que necessitamos... LCRivera - outubro/2014.

LRivera
Enviado por LRivera em 20/10/2014
Reeditado em 19/11/2014
Código do texto: T5005465
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.