Sem tempo a perder

Meia-noite. Sem conseguir dormir por causa do calor e dos pernilongos, Ramon resolveu mexer na sua coleção de santinhos de falecimento, que ele guardava numa caixa de papelão, no alto de uma estante da biblioteca. Eram ao todo 52 santinhos, só de gente da família, alguns com mais de quarenta anos (como o do seu bisavô Juliano, falecido em 1972, de infarto, e o da sua tia-avó Corina, que morreu um ano depois, aos trinta anos, de câncer de pulmão, embora nunca tivesse fumado).

Impressionado com o caso de sua tia-avó, Ramon calculou as idades dos outros parentes e descobriu que a maioria não tinha chegado nem aos sessenta anos. Como no verso de cada santinho ele tinha anotado a causa da morte (pensando em escrever mais tarde uma história fúnebre da família), resolveu marcar as que ele acreditava terem origem genética. Ficou assustadíssimo com o resultado: 95% das mortes na sua família, de ambos os lados, desde 1972, tinham sido causadas por doenças com fortes bases genéticas. Ramon então concluiu que já tinha vivido mais de dois terços da sua vida, pois acabara de completar 39.

Para ser mais preciso em seu cálculo, Ramon resolveu somar as idades que seus parentes tinham quando faleceram e dividir pelo número de santinhos, tirando assim uma média. Na estranha lógica de Ramon, essa média seria a idade que ele teria quando morresse. Resultado: 56 anos. “Não vou conseguir nem me aposentar”, pensou Ramon. “Assim não vale! Vivo para trabalhar, pelejando num mar de inveja, ódio e humilhação, para depois morrer na praia? Não é justo!”, concluiu indignado.

Ramon então começou a pensar em tudo que tinha planejado fazer quando se aposentasse: conhecer Lisboa, Paris, Amsterdã e Praga, escrever um romance policial, viajar com a mulher e os filhos para o Nordeste e depois para o Sul, ler a lista de livros que ele vinha fazendo desde os anos noventa, curtir mais a família e a natureza, etc. “Vou perder o lado bom da vida”, disse para si, desolado. “Queimarei a parte ruim, trabalhando como um condenado naquele maldito banco, estressado, angustiado, para na hora de começar a parte boa Dona Morte sair de sua emboscada e transformar em nada todos os meus planos? Não, isso não!”, exclamou Ramon.

Olhou o relógio. Duas e meia da madrugada. Foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho e disse: “Ramon, você está louco, precisa de um tratamento, isso é fato; mas na sua loucura, hoje, você viu uma luz. Não há tempo a perder”. E sorriu.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 24/10/2014
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