O espelho

Sempre achei um espelho algo interessante. É na solidão que a gente se olha, percebe a quantas andam o olhar, se doce, meigo, carregado de ternura ou com ares de arrogância e de prepotência.

Espelho é mágico, certamente. Porque nos provoca, nos convida a olhar para dentro da alma, com verdade e espanto.

E fico imaginando centenas, milhares de espelhos espalhados por esse país apaixonante e tão plural. E cruel. Espelhos espalhados pelas calçadas, avenidas ou mesmo ruas tranquilas de cidades pequenas. Como as pessoas olhariam para dentro de suas almas? Teriam coragem? Acredito que não. A primeira desculpa para desviar o olhar seria “não tenho tempo”, “estou com pressa”, “ah” que nada a ver”.

Aqueles de coragem poderiam até, ousadamente, ouvir alguma voz interior, tentando, quem sabe, com alguma honestidade moral, se questionar: “por que e por quem estou nutrindo tanto ódio?” Claro, antes exaltando e sorrindo diante da própria beleza, os cabelos pintados, escondendo as marcas do tempo e as naturais passagens da história da própria vida, as tatuagens e os percings língua adentro.

Durante o processo eleitoral e com o final da apuração dos votos, o medo daquilo que a condição humana pode produzir, para mim, foi avassalador.

Em tempos de conflitos ideológicos, raríssimas eram as pessoas que conversavam civilizadamente. Um não ouvia o outro. Enquanto o “um” fingia ouvir para depois declarar a sua verdade absoluta, exalando sapiência, o “outro” se preparava para a mesma empreitada. Um debochava com abundante sarcasmo e o outro se ofendia e revidava em voz alta. Um se achava o dono de uma verdade incontestável e o outro era de imediato chamado de imbecil, no melhor dos adjetivos. Amizades se partiram. Até quando? Quem sabe até a próxima partida de futebol, se o time for de ambos os corações.

Gostaria imensamente que o país, a sociedade estivessem à frente dos interesses partidários. Sei que isso é pura infantilidade. Mas é desejo.

E como gostaria que estudassem história do Brasil e compreendessem que a maior parte da sociedade almeja uma reconsideração histórica. Antes, casa grande e senzala, depois sobrados e mocambos e mais tarde favelas e grandes avenidas com shoppings centers para atender sorridente à sociedade do espetáculo.

Mas desejar isso é muita ousadia para aqueles que saboreiam preconceitos, sendo até desaforo para aqueles que sempre estiveram do lado de cima da vida ou pensam que se sentam nos confortáveis camarotes do poder. Para esses não é nada bom que haja escassez de empregadas domésticas, que antes serviam também para saciar os seus patrões, sendo abusadas também pelos seus filhos. Incomoda na elite essa coisa de ter colega preto na universidade, disputando alguma vaga, literalmente concorrendo. O de origem humilde sendo beneficiado depois de cinco séculos de opressão. De tão míope essa suposta elite não consegue enxergar que, com menos pobreza, menos exclusão, o progresso se estende a todos os segmentos.

A miopia exige óculos de grau. E grau alto. Mas isso pode não parecer elegante, apesar das inúmeras ofertas modernosas disponíveis no mercado. Lentes de contato podem ser pouco desconfortáveis, porém igualmente necessárias.

Então, se não se quer óculos ou lentes, poderia se pensar no pé. Isso mesmo: o lugar onde colocamos os nossos pés.

Quem sempre pisou em chão de aeroportos internacionais, em shoppings atraentes e com luminosidade intensa, nas suas edificações tão bem elaboradas, restaurantes com excelente carta de vinhos importados, certamente não sabe o que é o sonho de poder ter um livro à disposição. Mesmo que seja o mais barato daquela prateleira de usados. Muito menos sabe o que é buscar um balde de água numa bica insalubre lá do outro lado da cidade ou vilarejo. Muito menos sabe o que é receber um salário mínimo sempre. Isso, se tem emprego. E também não sabe que as pessoas sentem – essas outras pessoas que pisam com sandálias de dedo ou mesmo descalças em espaços nada salubres, com buracos cheios de água parada e filhos com barrigas grandes de vermes sentem. E nem imaginao que é uma criança à beira da morte, castigada pela fome, perguntar: “mãe, será que no céu tem comida?”

Quem sabe, muitos fariam piada e ririam de balançar a barriga limitada por um cinto no primeiro furo.

Gostaria que as pessoas se olhassem no espelho, mesmo com a pressa costumeira, e compreendessem que a sociedade brasileira nasceu do estupro, vítima de todas as formas de violência e que é preciso se comprometer a escrever uma outra história. Com menos deboche, menos prepotência, menos rancor e mais sensibilidade. Melhor dizendo: com um mínimo de alteridade.

E aprender a ler os jornais nas entrelinhas. Quais os interesses que estão sombreados nos textos, nas imagens, na televisão. Os milhões de dólares que a mídia arrecada – como arrecadou nessas últimas eleições - para continuar beneficiando aqueles que pisam em terra firme do capital , ou pior: aqueles que pensam pisar em terra firme.

E seria de bom tom que aumentasse o interesse pela leitura de alguns livros de Sociologia. Quem sabe a gente descobriria o que leva um “pé rapado” a pensar como os tradicionais donos do poder? O que o leva a pensar que tudo tem que ser assim, tem que explorar mesmo e isso é natural?

Conheço pessoas já perto dos 70 anos que moram em casa herdada do pai, na periferia de São Paulo, e que se acham o máximo. Outros que ganharam casa da mãe para poderem ter onde morar... e acreditam piamente naquilo que os tradicionais donos do poder dizem, que a exploração é algo certo e justificam de boca cheia os lá de cima. Imagino a inveja quando veem que pessoas mais jovens conseguiram ser donas de um teto e construir uma nova história... e eles não. Não chegaram a um curso superior porque achavam que somente o trabalho braçal e não intelectual daria conta de uma vida melhor, mas centenas de pessoas pobres e uns tantos negros já chegaram lá. Existem pessoas de origem simples que já têm carro melhor que o seu FIAT Uno duas portas com bem mais de uma década circulando pelas ruas da cidade. Aí a coisa complicou... o ódio, a inveja e a repulsa pelos novos projetos se implantaram e não saem mais.

Então, Aécio, o problema não é você e o seu partido. Fica frio. Não precisa debochar de mim, me chamando de petista pouco esclarecida ou leviana – como você gosta muito de falar, principalmente de mulheres. O problema é nosso. Temos dificuldade em trabalhar a nossa identidade, as nossas origens e tecer os nossos destinos. Somos muito cruéis, Aécio. Mais individualistas e egoístas que qualquer ser vivente possa imaginar. O seu deboche, a risadinha de quem sabe tudo, que os outros, os diferentes de você, que acha que são ignorantes e imbecis, também é de milhões que acreditam que sabem muito e pensam que têm dinheiro e poder, mas não tem não. Nem de longe.

Fica frio, Aécio. Já falei que o problema não é seu. O problema está na nossa falta de sensibilidade, de companheirismo, de identidade, de conhecimento verdadeiro da nossa história, de entendimento do que o capital quer vorazmente e luta com todas as forças e expressões de mesquinharia para não dividir absolutamente nada, nem possibilidades, nem espaços e sonhos, mantendo firmes o orgulho, a arrogância e a prepotência.

Ontem mesmo o Papa Francisco afirmou no Vaticano, diante dos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, “ estar do lado dos pobres é Evangelho, não comunismo”. E, por extensão desse pensamento, cabe aos carolas de plantão que votaram em você, Aécio, pensarem um pouquinho. Francisco assinalou: "o escândalo da pobreza promove estratégias de contenção que servem unicamente para transformar os pobres em seres domésticos e inofensivos. Quem reduz os pobres à "passividade", Jesus "os chamaria de hipócritas".

Faltam óculos de grau... e pelo menos alguma compaixão.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 29/10/2014
Reeditado em 30/10/2014
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