A morte de D. Jaciara

“Consegui!”, postou D. Jaciara em sua página no Facebook, assim que seu jatinho decolou do Aeroporto Internacional Juca de Sá rumo a Los Angeles. Com ela estavam seu marido e três de seus quatro filhos (o mais velho já se encontrava a salvo em Paris). A maioria dos imóveis da família foi vendida e todo o dinheiro transferido para bancos norte-americanos e suíços. Obras de arte e antiguidades em geral seguiram de navio.

Depois de meses de tensão, acompanhando os debates entre os candidatos à presidência e se preparando para o pior, D. Jaciara estava agora tranquila. Conseguira escapar do comunismo (ou do que ela acreditava ser comunismo), vitorioso nas eleições, e de suas consequências nefastas para o grupo do qual ela e sua família faziam parte, com orgulho: o dos “melhores”. Representando 1% da população do país, os “melhores” detinham quase 50% da riqueza nacional, o que, na opinião de D. Jaciara, era justíssimo. “São ricos porque merecem”, argumentava.

Todos os dias, em sua página no Facebook, D. Jaciara criticava as políticas sociais do governo, que, segundo ela, comprometiam seriamente a economia do país, pois davam corda aos vagabundos, “essa multidão de gente que fica em casa coçando saco, quando deveria estar nas linhas de montagem, varrendo rua, carregando lixo, etc.”, escrevia. Dona de uma mansão com mais de sessenta cômodos, sua preocupação maior era com a dificuldade de se encontrar empregadas domésticas. “Por um salário mínimo já não se acha mais! Daqui a pouco vão exigir três!”, escreveu uma vez, indignada, e completou: “Se for reeleito, esse governo instaurará no país uma ditadura comunista das mais ferozes, e nela certamente haverá um ministério comandado só por domésticas”.

Ao pressentir a vitória do comunismo nas eleições, D. Jaciara não perdeu tempo: organizou sua fuga para os Estados Unidos, país de vencedores, “onde os melhores são valorizados e os vagabundos devidamente punidos”, dizia. Pelo menos era o que ela acreditava, e desde a primeira vitória do governo vermelho sonhava em se mudar para lá, para ver seus netos serem educados nas melhores escolas do mundo e ganharem muito dinheiro.

Finalmente estava realizando seu sonho, deixando para trás um país de perdedores, entregue aos “demônios vermelhos”, que em breve confiscariam todo o patrimônio dos ricos, “uma injustiça!”, dizia. Essa era a opinião de D. Jaciara, e não adiantava ninguém contestar, porque era o que ela acreditava e pronto, só enxergava isso. “São vagabundos sim!”, escrevia no Facebook, respondendo a qualquer um que lhe chamasse de preconceituosa, elitista ou ignorante. “Se é pobre é porque merece, porque não tem talento para ser rico, então tem que trabalhar naquilo que sua incompetência permitir. Se os comunistas ganharem, escrevam isto: não teremos mais empregadas domésticas, varredores de rua, frentistas, balconistas de loja, lixeiros, carregadores de bagagem, etc., sabem por quê? Porque no fundo nenhum deles gosta de trabalhar, e quando receberem as tetas que o governo lhes dará sem exigir nada em troca, largarão seus empregos e viverão às nossas custas, como essa multidão de vagabundos que está aí...”, e por aí vai.

Não, o avião de D. Jaciara não caiu. Ela só vai morrer daqui a três anos. Sei disso porque já morri e tenho acesso a várias informações aqui no além. D. Jaciara vai morrer e voltará à terra como Mary Jones Robert, uma americana afrodescendente inteligente e dedicada, mas muito pobre, que passará a vida inteira trabalhando 10 horas por dia como garçonete, faxineira e varredora de rua em Los Angeles, não por preguiça, incompetência ou burrice, mas por falta de oportunidades. Tentará de tudo, correrá atrás, mas não conseguirá realizar seu sonho de ter uma casa, um carro e dinheiro para a educação dos filhos. Morrerá aos 58 anos, de infarto, sozinha e com fome, numa rua escura e úmida de Beverly Hills.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 31/10/2014
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