O Pintassilgo

Há muito tempo eu não me sentia tão empolgado com um livro como estou agora com 'O Pintassilgo', de Donna Tartt. É um calhamaço de mais de 700 páginas, que assusta à primeira vista, mas que quando você começa a ler e a história vai te puxando, não dá mais para largar – e aquele tijolo, que antes te amedrontava, de repente parece pequeno e leve como uma pluma –; cada página é um deleite para a alma, um prazer sem explicação: você não quer que o livro acabe. Não é nada profundo. É uma história envolvente, divertida, muito bem contada por uma escritora talentosa que, certamente, ama muito o que faz.

O livro começa em Amsterdã, com o personagem principal, Theo Decker, escondido num hotel, e depois volta no tempo para contar sua história desde o início, quando, aos 13 anos, perde a mãe num atentado terrorista dentro de um museu de arte em Nova York. Theo está com a mãe no momento da explosão. Sobrevive milagrosamente. 'O Pintassilgo' é um pequeno quadro pintado pelo holandês Carel Fabritius em 1654, que Theo tira dos escombros do museu e leva para casa...

Não vou contar mais nada. Quem não leu o livro e quiser saber mais, é só ir ao Google e digitar 'O Pintassilgo', que vários resumos e críticas aparecerão. Não é sobre o livro que eu quero escrever hoje, mas sobre algo ligado a ele: o talento.

Donna Tartt é talentosa e ama muito o que faz. Essa frase me veio ontem durante a leitura de 'O Pintassilgo', e hoje, refletindo sobre Educação Infantil, pensei: Quantos talentos incríveis para música, literatura, poesia, teatro, cinema, pintura e outras artes são desestimulados ou reprimidos na infância por pais, professores e coordenadores pedagógicos, quando deveriam desabrochar, ganhar vida? Muitos, eu acredito. Quantos profissionais frustrados... Quantas vidas medíocres...

“O que seu pai fazia?”, perguntou o jornalista Júlio Lerner à escritora Clarice Lispector em uma entrevista, em 1977. Ela respondeu: “Representação de firma, coisas assim... quando na verdade ele dava era para coisas de espírito...”. Que tristeza. Um talento perdido? Talvez. Mas ele tinha que sustentar a família... Já Manoel de Barros conseguiu viver muito tempo da sua longa vida exclusivamente para a poesia – seu talento nato, seu dom, sua arte –, graças a uma fazenda que herdou do pai. Que felicidade!

No mundo capitalista, certamente há mais Pinkhas Lispectors do que Manoéis de Barros...

Mas não devia ser assim. Mesmo sem suportes financeiros providenciais – como a herança de Manoel de Barros –, as pessoas deveriam poder fazer o que gostam a maior parte do tempo, sem medo, sem vergonha de ser feliz. E as escolas deveriam ajudar.

É triste ver crianças sendo obrigadas a decorar informações sem sentido para tirar notas altas em provas, a sofrer para aprender o que não gostam, porque precisam se destacar, vencer os colegas, vencer na vida... “Sua escola forma para a USP?”, perguntou certa vez uma mãe à diretora de um colégio de elite em São Paulo. Li isso numa matéria. Que coisa mais triste... Formar para a USP, UFRJ, UFMG... É para isso que serve uma escola? E para desenvolver originalidades, desabrochar talentos, ser feliz? Tem escola para isso? Sei que estou sonhando alto demais, talvez sendo até ridículo para alguns leitores, mas...

Carel Fabritius pintou 'O Pintassilgo' no ano em que faleceu, em 1654, aos 32 anos, vítima de um incêndio que destruiu seu ateliê e a maioria de suas obras. Talvez 'O Pintassilgo' tenha sido seu último trabalho... Estou com uma foto do quadro aqui no meu computador, minimizada, que eu olho enquanto escrevo... O que esse pequeno pássaro diz para mim do alto do seu poleiro, preso por uma corrente, 360 anos após ter sido pintado por um jovem que, ao que tudo indica, também amava muito o que fazia, é: “Se puder, voe. Não tenha medo. Voe”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 20/11/2014
Código do texto: T5042692
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