PARA SEMPRE AMALDIÇOADO PELO AVÔ (Pt. 3)
O avô de Pedrinho é um sujeito derrotado. E ele sabe disso. Ao longo de seus quase cinquenta anos de idade, tudo o que ele conseguiu foi um Celta prata, que comprou poucos anos depois de estrear na fase quarentona, ao custo de muitas horas extras feitas para a empresa para quem ainda presta serviço. Exercera trabalho braçal a vida inteira, puxando rodo em uma estamparia para silcar camisas e tecidos abertos. Não enriquecera, não se alfabetizara devidamente, aguardava a aposentadoria para ter o gostinho do descanso vitorioso.
A mulher, avó de Pedrinho, já havia o deixado. Ela não aguentou tanta acomodação e tanta falta de apetite para prosperar. O homem só queria saber de Cruzeiro. Nem com amantes ela precisava se preocupar. Um dia ela se cansou, deixou o fracassado para lá e se mandou. Foi prosperar-se. Bem soube ela nos anos todos ao lado do ex-marido que futebol não enche bolso, não enche barriga, não faz reles torcedor algum ter moradia. O avô de Pedrinho vivia de favor em um barracão de três cômodos dentro do lote da mãe. O resto era só aparência.
Quem tinha o costume de ver o seu Omar, principalmente nos finais de semana que ele podia passar em repouso, o via desfilar no bairro com garrafas de cervejas vazias presas pelos dedos das mãos indo buscar outras cheias. A melhor marca, ele fazia questão de pedir em voz alta no bar da dona Tetê. Eram memoráveis os churrascos que o morador supostamente mais feliz da rua e do bairro realizava. Com carne de primeira, que ele servia a família em primeiro lugar.
Restringia suas cortesias aos amigos cruzeirenses, que tal qual o seu Omar, mantinham a mesma predileção por sustentar uma vida insípida, limitada e de fachada. Não poupavam, no entanto, o dinheiro que destinavam ao clube de futebol – pasme – que eles veneravam.
Os atleticanos não. A estes, que muitas vezes eram úteis para prestar algum socorro para toda a família do seu Omar, mesmo ele dizendo para nenhum de seus parentes aceitar ajuda deles, pois não gostava ele de ficar devendo favor, só restava a indiferença, o deboche e a degradação por parte do avô de Pedrinho, que se auto proclamava melhor do que eles. Muito em nome das glórias que o time que ele torcia alcançara. Glórias que em matéria de patrimônio ou de status só cabiam ao clube.
Era fácil ludibriar o velho e sua turma. Aliás, é muito fácil ludibriar qualquer pessoa que leva futebol à sério. Vender a esse pessoal produto porco, insignificante e de péssima qualidade é coisa simples demais. Camisas, bandeiras, ingressos para jogos, a maioria confrontos pensados para ele gastar, grana alta às vezes, pacotes pay-per-view de TV por assinatura, entradas para bailes e eventos tematizados no clube do coração, audiência para transmissões de jogos do rádio ou da TV aberta ou para programas esportivos, edições de jornais impressos. Qualquer objeto contendo o escudo do time ou abrangendo a participação deste em algum campeonato tira o dinheiro dos abobados dessa turma e dos torcedores em geral. Eles consomem até mesmo as notícias que nada têm a ver com o esporte, desde que falem o nome de um ídolo do clube no meio delas. Nem que seja algo que somatize pontos negativos para a imagem dele, como as arruaças e as futilidades midiáticas que as personas inúteis do mundo futebolístico sempre se envolvem. E a mídia adora criar esses ídolos e em seguida explorá-los. Há anos que isso vem dando certo. Tem otário para idolatrar tudo!
O que o seu Omar e seus amigos recebiam em troca pelo investimento e pela dedicação ao Cruzeiro de Minas Gerais era a alegria boba que sentiam durante as conquistas do time. Tinha também a euforia, que os deixavam alucinados e violentos, loucos para arrancar prazer da violência. E mais a sensação de poder quando se viam em competição com torcedores de times que não tinham tantas graças quanto o que eles prezavam.
Futebol serve para isso também, para alimentar o ego da boiada com essa estúpida e falsa sensação de poder. Um poder que não existe ou que não se aplica a qualquer coisa tangível. Na prática, ninguém é melhor do que outro por que seu time é vitorioso na temporada ou na história. Mais na temporada do que na história porque, além de ser uma história moldada, morrem os torcedores, que são humanos e portanto mortais, e ficam os clubes, talvez para sempre, pois são empresas. E o futuro pode reservar grandes reversões de número de conquistas, clubes que jamais foram campeões nacionais podem passar a fazer parte do círculo de elite. Sendo só um instrumento de engenharia social, o quadro de medalhas ou o ranking dos clubes de futebol atendem a demandas sociopolíticas.
É claro que o avô de Pedrinho não sabe sobre os favorecimentos que o clube que ele aplaude vem obtendo das federações, dos cartolas, dos patrocinadores e da mídia. E nem queria ele saber. Desiludir-se para quê? melhor continuar a pensar que tudo é verdade. É um prejuízo muito grande que ele toma se ele der o braço a torcer para essas suspeitas que hoje em dia aparecem em qualquer canto. A vida inteira alienado, crendo que tudo que vibrou não foi em vão. A vida inteira gastando dinheiro e deixando de fazer coisas importantes. Nem mulher seu Omar tinha mais.
O pai de Tiaguinho é um sujeito bastante informado e politizado. Ele tem birra da conspiração mundial que administra o Brasil e faz jorrar na população os mais diversos mecanismos de entretenimento e que em benefício próprio emburrece, aliena, alegra, contém ou aniquila a mente do povo. A máfia italiana era uma dessas instituições que ele repugnava só de ouvir falar de algum de seus aparelhos de adestramento. Mafia italiana, Palestra Itália, Palmeiras, Coxa branca, Cruzeiro. Sim, o Cruzeiro também é um time de procedência italiana. É outro que era Palestra Itália. Mudou de nome depois de tomar uma surra de 9 a 2 para o rival Atlético Mineiro. O pormenor dessa relação dava o norte para as teses que alimentavam o pequeno interesse do seu Átila pelo galo mineiro e o faziam cuidadosamente apresentar seu filho ao futebol e à paixão atleticana. Coisa que falaremos depois.
Pedrinho voltou à escola no dia seguinte e foi logo procurar pelo coleguinha que com um drible e um comentário simples o deixou angustiado. Foi logo explicando a razão de sua mãe estar presa.
– Meu vô falou que você falou da minha mãe porque não tem nada pra dizer. Minha mãe tá presa porque vacilou. Com mané é assim mesmo: vacilou, dançou. O mundo é dos espertos! Jacaré que nada de costa a piranha come o rabo! Ha, ha, ha! Nois é malandro, cê num é! Logo ela sai da prisão e vai comigo no jogo comemorar. E vou roubar com ela. Tô nem aí! Quem manda nessa porra de Brasil é o crime. E ocê vai fazer o quê? Todo engomadinho, vai é ver nóis comemorá. Vacilão! Pra que que serve essa goma toda? Segunda divisão. Meu time nunca caiu pra Segunda Divisão. E o seu? Otário!
Tiaguinho só pensou que precisava dar um jeito para Pedrinho parar de pentelhar. Tava chato pra caramba e a reunião de colegas em que ele estava metido o interessava mais. Eles faziam coisas melhores do que discutir futebol. Havia garotinhas no grupo e elas ufanavam os meninos que se preparavam para jogar queimada com elas. Então ele foi categórico. Ele sabia que se ele dissesse para Pedrinho que não mais torcia para o galo e que passara a dividir com ele a torcida pelo Cruzeiro é algo que não lhe machucava em nada, não lhe causaria nenhum transtorno emocional do qual ele se amargurasse de sofrer. Quem se importa com futebol ao ponto de isso ser algo terrível de lidar, temporariamente que fosse, era Pedrinho. O avô o condicionou a ser assim. Tiaguinho já era independente em uma série de assuntos. E estando do mesmo lado, a discussão acabaria. Desarmaria completamente Pedrinho. E este lhe deixaria em paz. Acabaria a briga inútil. Poderiam ambos aproveitar melhor o tempo que gastariam com discussão de assunto fútil como é futebol.
Mas não foi tão simples assim para Pedrinho. Ele se sentiu como quem acabara de perder um brinquedo do qual gostava muito. Tiaguinho não podia fazer isso com ele. E a sensação de ter vantagem sobre o coleguinha, como ficaria? De que adiantava o time que ele torcia receber da cúpula que administra o futebol tantos troféus, se ele não teria quem atazanar a vida e era para isso que servia a instituição que ele era doutrinado nela? A alegria boba que acometia o garoto sempre passava depressa.
No outro dia, perigava, ele já não a sentia mais. Acabava rápido a crise dos foguetórios e outros barulhos e a euforia. Já se passaria a pensar o ano seguinte. Já pensariam nas novas edições dos campeonatos, em repetir a mesma novela sagrada de todo ano. Mineiro, Libertadores, Campeonatos Nacionais. E a vida a ver navios, a se contentar com pouco. Os campeões poderiam mudar e poderia não mais ser o Cruzeiro. Seriam os da vez, que pode até ser o rival. Só estava lhe restando uma vida de preocupação. De nada adiantava ele chamar Tiaguinho e os outros colegas atleticanos de vira folha. Eles não se importavam. E iam fazer parte da mesma torcida que ele, como pode?
Pedrinho foi para casa ainda mais aborrecido do que no dia anterior. Ia novamente ter umas palavrinhas com o avô. O que será que Pedrinho vai ouvir dele dessa vez? Acompanhe nosso conto.