Que vergonha, Ramon

Sábado Ramon levou a família para almoçar fora, num restaurante de comida a quilo que ele já conhecia, muito bom. Terminada a refeição, deixou a mulher e os filhos na mesa e foi ao caixa pagar a conta. “Mesa 14, por favor”, disse Ramon para a dona do restaurante (uma senhora de cara amarrada que, segundo as más línguas, era uma muquirana das mais terríveis, não confiava em ninguém, por isso só ela cuidava do caixa). “52 reais”, respondeu a mulher rispidamente, sem nem olhar para Ramon, que tirou o dinheiro da carteira e pagou. Ramon sabia que a velha tinha deixado de anotar alguma coisa na comanda, ou somado errado, porque, pelos seus cálculos, a conta teria que dar mais de 80 reais. “Bem feito”, pensou Ramon, “não vou dizer nada, para ela aprender”, e guardou a notinha no bolso, enquanto chamava a família para ir embora.

“Deixe-me ver a notinha”, pediu a esposa na calçada, a caminho do carro. Ela costumava fazer isso, a danada, sempre conferindo notas, fazendo contas, reclamando, pedindo desconto. Ramon devia saber que ela ia querer ver a notinha. Não teve jeito. “Está errado isso aqui”, ela disse. Ramon parou, fez cara de espanto, coçou a cabeça e perguntou: “Uai, está?”. “Sim”, respondeu a mulher, “Não anotaram dois refrigerantes, um suco e o seu segundo prato, lembra?: o salmão”. “É mesmo!”, respondeu Ramon, fingindo surpresa, “Depois eu volto lá e pago”, completou, abrindo a porta do carro. “De jeito nenhum!”, disse a mulher, “Temos que voltar lá agora! É o certo. E ainda vamos dar exemplo para os meninos”. A mulher do Ramon tinha essas coisas. “O que é meu é meu, o que é dos outros é dos outros”, costumava dizer. (Ah, se todos os nossos políticos e empresários pensassem assim... Enfim). Voltaram, pagaram a diferença, a bruxa agradeceu, e ainda deram uma aula de honestidade para os meninos.

Em casa, Ramon se trancou no banheiro, olhou-se no espelho e disse para si: “Que vergonha, Ramon, QUE VERGONHA! Você estava passando aquela senhora para trás, roubando-a, e ainda teve a cara de pau de fingir que não sabia de nada. Que horror! Ainda mais você, que sempre criticou o ‘jeitinho brasileiro’, a corrupção, a sem-vergonhice dos políticos, citando até historiadores e antropólogos para embasar seu discurso. Justo você! Sua mulher nunca leu Sérgio Buarque de Holanda nem Roberto DaMatta, nem fica no Facebook dando lição de moral em ninguém, como você, mas age corretamente, ensina o que é certo para os meninos, com exemplos simples de cidadania, de honestidade. Que vergonha... Agradeça a Deus a mulher que você tem, Ramon, AGRADEÇA!”.

Ramon agradeceu. E, com lágrimas nos olhos, jurou que nunca mais passaria ninguém para trás.

Estamos de olho.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/12/2014
Código do texto: T5067444
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.