TRECHOS DE UM ROMANCE NÃO LITERÁRIO

Já era quase meia-noite quando ouvi:

—Guilherme não está bem. Você pode vê-lo, e medicá-lo se preciso?

—Claro, já estou indo. Pessoal, desculpem-me, preciso ir.

Era uma noite úmida e fria. Estávamos acampados à beira de uma das 64 belas lagoas de Linhares. Retiro de carnaval. Naquela época eu acumulava mais de uma década de trabalho em drogarias e por certo portava em minha bagagem um kit com alguns medicamentos de uso popular, para pequenas emergências.

Lembrando deste episódio, veio-me a memória uma palestra de um intelectual que muito admiro, quando expunha sobre a mudança, ou mudanças ocorridas no nome, e por conseguinte no significado, do “retiro de carnaval”. Iniciou-se como “retiro Espiritual por motivo do carnaval”, atualmente simplesmente “retiro de carnaval”. E realmente não passa disso: retiro de carnaval, com todas as suas representações carnais (como diriam os religiosos conservadores), com baile de máscaras, homens vestidos de mulher e vice-versa, vampiros, bruxas, antigos imperadores romanos, King Kong, Gosthface (mascara da morte do filme pânico)... mas nada de mais, “umas dinâmicas para animar a galera” (notem meu ar de ironia).

As igrejas que moravam próximo aos grandes centros, que sofriam com a concorrência sonora das festas carnavalescas, decidiram ir para um local retirado, longe, e ali terem um momento descontraído e espiritual. Mas hoje é diferente. “-Precisamos inovar, sair da mesmice” - defendem alguns. É, concordo, precisamos ter medo do mesmo, da mesmice, da mornidade (de morno) ou seria morbidade (no seu sentido figurativo-espiritual)? Hoje, fugindo da mesmice, tem-se o retiro de carnaval, o espiritual ficou na memória dos saudosistas.

—Ei Guilherme, o que está sentindo?

—Estou com mal-estar, com ânsia de vômito. Acho que algo não caiu muito bem.

—Hum... Certo. Vou prepara um efervescente e um medicamento pra fígado, qualquer coisa me fala.

—Aqui está.

—Obrigado.

Perto daquela barraca estavam duas meninas conversando e rindo deliciosamente. Me aproximo e tento participar da conversa. Segundos depois uma delas se retira. Ali perto, embaixo de umas árvores, onde estávamos, havia uma rede, ainda úmida por causa da última chuva. Sentei-me, e convidei-a para se assentar.

Senti um calafrio, não pelo clima (temperatura), mas pelo clima (estado emocional), a rede conspirou a meu favor fazendo com que ela ficasse bem pertinho de mim. Ela se encolhia com frio. Abracei-a. Conversamos uns instantes. Arrisquei um beijo. Ele foi correspondido.

Passado exatamente dez anos lembro com saudade daquela rede, daquelas árvores, daquela lagoa, daquele momento...

Nunca mais acampamos (ela detesta acampar, este foi o primeiro e último, desde que deixou para trás a adolescência). Não mais sentamos juntinhos nalguma rede. A barraca que ela comprou nos últimos instantes antes que a loja fechasse, há muito tempo que não está em sua posse.

O momento de hoje é outro.

Não estamos a beira de uma lagoa, num retiro de carnaval. Estamos juntos, e isso que importa. Temos um lindo filho e outro também lindo para chegar (está quase lá, meu amor, só faltam quatro meses!).

Minha princesa,

Obrigado por estar comigo nestes 10 anos. Não consigo conceber minha vida sem a tua.

Obrigado por suportar minhas ausências, mesmo quando estou presente de corpo, mas mergulhado no estudo ou no trabalho, ainda mais nestas novas etapas de nossas vidas.

Obrigado por me suportar, ser meu suporte. Meu norte. Meu horizonte. Meu tudo.

Obrigado por ser minha benção, mesmo sem saber o que fiz para receber tal benção.

Perdoe-me por ser teu castigo, embora não saiba qual foi seu erro para receber tão severa punição.

Te amo.