O diálogo que não existiu

Dois homens mascarados, vestidos de preto, usando coletes e armados com metralhadoras AK-47 invadem a sala de redação do semanário humorístico Charlie Hebdo em Paris. São 11:30 hs da manhã do dia 7 de janeiro de 2015. Estão sentados à mesa em reunião Stéphane Charbonnier, o editor-chefe e cartunista conhecido como “Charb”, Jean Cabu, Georges Wolinski, Bernard Verlhac, Philippe Honoré, cartunistas, Laurent Léger, Fabrice Nicolino e Philippe Lançon, jornalistas, Bernard Maris, economista e Sigolène Vinson e Elsa Cayat, colunistas.

- “Vocês são do jornal Charlie Hebdo?”, pergunta um dos homens de preto.

- “Sim somos. O que vocês desejam?”, fala o editor-chefe Charb.

- “Viemos vingar o profeta Maomé! Mas, também podemos conversar com vocês...”

- “Com essas armas em punho?”

- “Exatamente! Seria pior se elas estivessem funcionando, não acha?!? Vamos direto ao assunto: o endereço de vocês não está claro... Já há algum tempo, parecem estar se escondendo... Desde o atentado realizado por nós em 2011 contra a sede anterior desta revista e várias ameaças de morte, vocês não desistem de ofender o profeta Maomé... Por que não respeitam nossa religião? Sabiam que o profeta Maomé não pode ser representado por nenhuma imagem e muito menos ridicularizado e, muito menos ainda, em público?”, fala de forma contundente o mesmo homem de preto.

- "Calma! Vamos aos fatos. Organizações muçulmanas processaram-nos judicialmente sobre nossas publicações há algum tempo atrás, mas o juiz confirmou nossas posições como 'liberdade de expressão'. Ganhamos a causa! E por isso continuamos nossa atividade profissional..."

- "Que 'liberdade de expressão' é essa que desrespeita nossas convicções mais profundas? Vocês parecem ser pessoas estudadas, ilustradas... Devem saber que existe também a 'liberdade de religião'? Nós somos movidos por crenças! Vocês não são capazes de entender a sensibilidade dos outros? Vocês sabiam que, na Argélia de maioria muçulmana, a minoria cristã vive há mais de 50 anos numa relação respeitosa e construtiva com as tradições e crenças do país? Por que aqui é diferente? Só porque aqui os muçulmanos são a minoria? Vocês creem que nossa religião muçulmana é uma estrutura ultrapassada? E, se vocês ganharam a causa judicial, por que continuam se escondendo?"

Charb e todos sentados ao redor da mesa ficam embaraçados com este ataque verbal. O homem de preto continua:

- "Vocês alguma vez, nesses trinta anos de história da revista Charlie Hebdo, se fixaram nos aspectos positivos de nossa religião muçulmana?"

Charb retoma o fôlego e retruca:

- "Ainda que vocês, muçulmanos, sejam fiéis a sua doutrina religiosa, ao seu livro sagrado – o Alcorão –, desde 1990 sua manifestação social tem-se mostrado violenta... Olhem para o Iraque, a Síria, a Nigéria, a Somália, a África Central... Olhem, agora, para as armas que vocês têm nas mãos..."

- "Voltaire, o maior representante de nosso iluminismo francês, nunca permitiria que vocês humilhassem o islamismo de forma tão descarada e insistente!"

- "Está bem, nós reconhecemos que vocês estão ressentidos devido às nossas charges provocativas e islamofóbicas... No entanto, o mesmo Voltaire volta-se contra vocês dois nessa atitude violenta e obscurantista de tentar intimidar-nos e ameaçar-nos com estas armas de destruição. Ele sempre defendeu o uso da razão ilustrada e clarificadora!"

O dois homens de preto parecem parar um pouco... para pensar... Charb continua:

- "Quem sabe, Voltaire, pelo que escreveu e viveu, não seria capaz de reconciliar-nos?"

O homem de preto responde:

- Talvez...

O tempo parece parar de uma vez...

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Os homens de preto são os irmãos Chérif e Said Kouachi, nascidos na França e descendentes de argelinos. Ao chegar na rua Nicolas-Appert n. 10, e subir as escadas do prédio, eles abriram fogo. Foram assassinados oito jornalistas, dois policiais, um visitante e um transeunte que se encontrava nas imediações do prédio. Sob responsabilidade da Al Qaeda.

Os dois homens de preto foram alcançados e mortos numa gráfica pela polícia dois dias depois.

Devido à intransigência... esse diálogo não existiu.

Miguel Wetternick
Enviado por Miguel Wetternick em 08/02/2015
Reeditado em 04/03/2015
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