AS MÃOS DE EURÍDICE

“Não despreze estes livrinhos antigos. Este traz uma cômica tradução de vida.”

Essa foi a frase que encontrei logo no início de uma obra esquecida e amarelada nas tristes prateleiras de um “sebo”. Um livrinho, como na dedicatória, de uma edição bastante antiga e que conta, em um monólogo dividido em dois atos, as frustrações de Gumercindo Tavares – personagem fascinante.

Ao tê-lo resgatado pela ridícula bagatela de R$ 1,50, (juntamente com “A Morte de Ivan Ilitch”, de Léon Tolstoi, R$ 4,00; e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, por R$ 5,00) nada me faria desfazer-se desse fascinante ‘pocket’, pois a vida tragicamente cômica corre solta nos relatos e nas entranhas de nosso incrível protagonista, Gumercindo. Mas incrível mesmo é o que se pode fazer com apenas R$ 10,00 em um “sebo” (ganhando, inclusive, um desconto de R$ 0,50. Podem acreditar!).

Ao ser enfeitiçado pela dedicatória, conforme explicito no início desse relato (confeccionada e assinada por Carmen Hech – e é justo citá-la, mesmo sem conhecê-la), não tive dúvidas em degustar o trabalho de forma a tentar interpretar, em voz alta, o que exigia cada cena. A espontaneidade, conforme o ritmo ia se estabelecendo, logo se transformou em uma prática que ia além de uma simples tentativa interpretativa, tornou-se, aos poucos, visceral, simbiôntica... A história, metaforicamente enredada pelo mito de Orfeu e Eurídice, ganha forma em ambientação contemporânea e um formato metonímico (a parte pelo todo), forçando-nos a conhecer as mulheres da obra, apenas, através de restritas descrições de suas mãos, primeiramente, a amante, Eurídice, e em uma outra intenção, mais para o final da obra, transmudar-se para Dulce (esposa de Gumercindo).

No mito grego, Orfeu, dotado de dotes musicais herdados de seus pais, Calíope (uma das nove musas) e Apolo (deus Olímpico), consegue convencer Caronte a levá-lo ao mundo subterrâneo de Hades, onde se encontra Eurídice. Uma vez lá, depois de ter negociado com o deus – que só ouvi-o por conta de seu belo desempenho musical – deixou que a tão desejada Eurídice fosse embora com ele. Mas não foi tão simples assim, a condição obrigava-o a não voltar o olhar para trás, senão sua amada tornar-se-ia poeira voltando para o seu destino: a morte.

Em “As mãos de Eurídice”, de Pedro Bloch, não foi diferente. Contaminado pela jogatina e perturbado com a beleza de Eurídice, Gumercindo, deixa esposa (Dulce) e filhos, levando todas as economias da família, para seguir para Buenos Aires e gastá-las nas roletas de cassinos platinos em companhia – é claro! – de sua amante. Naturalmente o dinheiro acabou, pois as mãos de Eurídice perdiam-nos “graciosamente”. Quando tudo se transformou em poeira, a amante também se foi, dando margem para o protagonista refletir e voltar para casa depois de longos sete anos (referentes aos sete pecados capitais).

Sabendo que a literatura, em uma visão particular, nada mais é do que o olhar sensível de alguém no mundo. Podemos perceber, na história como um todo até a idiossincrasia de um único sujeito (o autor), elementos que nos permitem refletir sobre a complexidade do homem e o impacto de suas atitudes no mundo.

Quanto ao autor, Pedro Bloch (1914-2004) – além de dramaturgo – foi médico, jornalista, compositor, poeta e autor de várias obras infanto-juvenis. Sua família era oriunda da Ucrânia, mas Bloch naturalizou-se brasileiro. Chegou, inclusive, a lecionar na PUC do Rio de Janeiro. Seus trabalhos como escritor soma-se em um acervo de mais de cem livros, grande parte destinada ao público infanto-juvenil. Dizem que muitas de suas obras foram inspiradas por crianças enquanto clinicava como médico em determinado momento de sua vida.

Contudo, esse é um trabalho maravilhoso e digno de ser vislumbrado em um teatro com um ator a altura. Difícil é traduzir com palavras todo o encantamento provocado por essa excelente pintura da vida. Trabalho Inefável, inquietante, simplesmente um achado em meio a traças que corroem e mal tratam todo um acervo de clássicos deixados para trás pela moderna e sufocante preferência por “obras menores” – falo dos ‘best-sellers’ – que nos furtam a possibilidade de um caráter catártico de descobertas verdadeiramente humanas.

Gostaria que todos sentissem um pouco do que senti ao lê-lo. Espero que, assim, nas vísceras de todos os leitores curiosos, a obra se torne um elemento de autorreflexão e prazer. Procurem-na, leiam e entendam o meu estado...

Isso é tudo!!!

Dilso Santos
Enviado por Dilso Santos em 09/02/2015
Código do texto: T5131141
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