Prova de Amor
 
               Hoje sou uma pessoa mais triste; entretanto mais forte.
          A morte da minha avó fez isso comigo.
Não nos falamos há quase treze anos. A última vez que a vi foi no Natal de 2001.

Porém, sempre com o dom de me mostrar o caminho certo, faz isso, mesmo depois de ter partido.
          Esses anos sem contato com minha velha me fizeram repensar muita coisa. Tudo bem que estou num momento saudoso, mas tudo que escrevo aqui é a mais pura verdade e vem de dentro do meu coração.
          Realmente foi muito difícil vê-la deitada num leito de um hospital publico, após um Avc, sendo mal cuidada por residentes que mal sabiam o que faziam.
          Conduzir o final de vida da minha avó foi muito sofrido para mim, mas sinto que foi como se fosse um presente que ela estava me dando. Como se ela tivesse escolhido a mim, Henrique, a pessoa para ficar com ela, segurar sua mão, tirar sua dor e deixa-la partir como sempre viveu: Com dignidade.
               Naquela primeira semana de Uti, sem saber se no começo ela me ouvia; se me reconhecia.
               A primeira coisa que fiz ao vê-la deitada, entubada, dialisando, com droga vasoativa foi pensar onde havíamos nos perdido.
               Nunca fomos confidentes. Mas sei que, no seu silencio, seu jeitinho fechado, sua ausência causada pelo trabalho, para sustentar-nos, ela sempre nos amou.
          Ao ouvir minha voz, vi que minha velha franziu a testa.
          Ao pedir perdão, segurando a mão dela, o polegar dela me acariciou a palma da mão, como quem dizia que me perdoara.
          Esse momento ninguém vai me tirar e vou guardar para sempre.
          De jeito nenhum deixaria minha velha sofrer.
          Ela que, depois de dialisar por quatro anos, submeter-se a um transplante renal que durou nove anos, e decidir em sã consciência (a três meses do falecimento) que não dialisaria mais; não gostaria de ficar em cima de uma cama, sem se mexer, dialisando.
          Conversar com minha mãe e irmão sobre parar a diálise e desligar a Noradrenalina foi uma das coisas mais difíceis que já fiz na minha vida. Mas fiz.
          Convencer a intensivista que queria investir no mundo da minha avó, a não fazer a traqueostomia, parar a diálise e desligar a Dva foi tão difícil... O olhar dela me fuzilando, perguntando-me se tinha certeza, e se eu sabia o que aconteceria?! 
Lógico que eu sabia! Infelizmente eu sabia.
            Na quarta-feira à noite paramos a diálise e desligamos a Dva. Iniciei morfina contra todos os intensivistas. Para isso, pedi autorização à diretoria do hospital, que me foi concedida. 
          Ao chegar ao hospital na quinta-feira pela manhã, vi no monitor que ela estava bem bradicardico. A enfermagem tomava seu café, tranquila, e os residentes estavam do outro lado doCti, fazendo as prescrições.
          Pedi emprestado o estetoscópio de um colega. Um estetoscópio verde, cujas olivas machucam o ouvido. Segurei a mão da minha vó e auscultei-lhe o coração: Tum, tá, tum, tá, tum, tá, tum... Silêncio.
          A linha isoelétrica do monitor e o bipe contínuo fizeram com que a equipe do Cti acordasse; mas, minha avó já estava dormindo. E me deu esse presente, falecer ao meu lado, segurando a minha mão, enquanto eu ouvia as últimas batidas do seu coração.
Enorme coração! Que me ensinou tanto: A ser honesto honrado; A conseguir tudo com esforço próprio, sem depender de ninguém. A batalhar e correr atrás dos meus sonhos. Mostrou-me que se deve zelar pela família, ainda que, para isso ela tenha-se esquecido dela própria.

          Minha vó... Que tenho certeza que se orgulhava de mim. Minha vó que nasceu e cresceu pobre, conseguiu batalhar e formar seus três filhos. Ela, minha avó, enchia a boca para falar que seu neto (eu), ia ser médico. Minha vozinha, que partira segurando a minha mão...
          Pedi para correr um Ecg que confirmou a linha isoelétrica em todas as derivações. Desliguei seu ventilador, retirei o tubo, cerrei-lhe os olhos... Beijei-lhe pela última vez a sua testa, como fiz inúmeras vezes... Hoje estou de luto. Uma tristeza que parece eterna, um buraco sem fundo. Uma vontade de nada. Triste.
              Citando Shakespeare e traduzindo Sergio Gomes: ‘"Depois de algum tempo você aprende a aceitar suas derrotas, com a cabeça erguida e olhos adiante".
(Henrique Botelho) 
 
 
 
Por


Esse foi um relato concedido por um amigo médico. 
Classifiquei-o como emocionante, impactante, talvez...

Com a sua permissão transcrevi, para que possamos entender e vivenciar (ainda que imaginariamente), que enquanto seres humanos, às vezes precisamos fazer o que tem que ser feito; e que, mesmo que  a nossa razão se demore a aceitar, e a nossa ação possa doer incessantemente, ainda assim, no exercício da nossa humanidade precisamos manifestar a nossa atitude de sabedoria.
Joana Rodrigues
 







 
 


 
 



 
JOANA RODRIGUES
Enviado por JOANA RODRIGUES em 10/02/2015
Reeditado em 10/02/2015
Código do texto: T5132564
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