O outro espelho

Parece que ele chegou sorrateiro, com as bordas um tanto machucadas pelo tempo, moldurado com couro escuro. Couro trabalhado pelas mãos hábeis e pacientes do artesão do final dos anos 60.

Eu não me lembro do dia em que comprei o espelho na feira da praça da República. Tempo dos hippie, das novidades trazidas de Nova York. Época de fecundas críticas à Guerra Fria, ao capitalismo excludente e a todas as formas de violência. Tempos em que a juventude pretendeu ousar, dizer do seu valor, exercitar a voz não mais da obediência. Não, a cabeça não poderia mais ser baixa, deixando o pescoço à mostra para que algum candidato a autoridade viesse dar o seu tapa cínico e humilhante. Tempos em que a juventude resolveu inventar um outro relógio, não apenas aquele que marcava o tempo para despertar para o trabalho exaustivo, mas para criar, imaginar e brilhar. O tilintar do despertador não deveria trazer um cansaço antecipado e sem esperanças, mas o chamado para um dia ensolarado e de ventos brandos.

E eu me encantava com aquela feira multicolorida, muitas vezes intransitável, com pessoas de cabelos desgrenhados tocando suas flautas de bambu, sentadas no gramado e tentando viver com total intensidade a criação de uma sociedade alternativa.

Guardei o espelho. Ficou por alguns anos embrulhado em alguma caixa como resultado de algumas mudanças de casa.

Tirei o pó, passei um pano com álcool perfumado. Cuidadosamente escolhi a parede maior do meu quarto, como um espaço especial para aquelas memórias deixando vir dali suaves melodias de um tempo de sonhos. Muitos sonhos.

Por aquele espelho eu via, tempos atrás, um olhar perdido, machucado pelos desencantos e desencontros da vida. Por ali eu via o meu olhar de medo, de inquietação doentia pelo futuro – meu e do mundo.

E o espelho fala, me ouve, me dá liberdade para questionar, para me indignar, para propor. Me dá conselhos até e me faz refletir o quanto sofremos em vão, quanto tempo perdemos na vida por coisas que nem aconteceram. Olhares que se perderam no passado, na esperança da construção de um tempo mais ameno, mais musical, marcado pela ideia da valorização do coletivo e da doce partilha. O espelho me faz lembrar do tempo da crença na solidariedade e na amizade sincera que não haveria de morrer. E me acolhe na minha solidão, nas interrogações sobre o futuro. Haverá futuro? Terei alguém ao meu lado ou será que o café será sempre feito na cafeteira pequena porque não terei ninguém para dividir aquela santa bebida?

E o espelho me provoca, me faz lembrar que a Praça da República, aquela praça dos hippies sonhadores e utópicos, virou terra de ninguém. A estação do metrô roubou o lugar das pulseiras de crochê ou de pedrinhas, dos brincos de penas coloridas, dos cintos trançados, das garrafas de vidro cortadas para se transformarem em vasos, das bolsas de panos coloridos e dos instrumentos musicais que despertavam novos talentos. Os trens vão e vêm e desdenham, em alta velocidade, dos sonhos que ficaram por ali. Jovens com seus ouvidos colados a sons de centenas de decibéis e olhos fixos nos seus smartphones, enviando mensagens para pessoas que jamais abraçaram, olharam nos olhos ou deram o ombro para os momentos mais delicados. E estão com as suas nucas à mostra para os tapas que a vida certamente vai lhes dar. E fazem suas selfies exalando a felicidade e a satisfação que não há e esperam um grande número de curtidas no Face.

E o espelho me olha, me observa, silencioso e questionador, me percebendo grisalha e com inquietações ainda juvenis. Ele não tem resposta.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 02/03/2015
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