Então viramos retrô

Parece que resolvemos voltar ao passado. Pelo menos, retornar ao estilo, a alguma estética dos anos 50 ou 60. Quem sabe na tentativa de sugerir a lembrança de bons tempos, de algum equilíbrio, algum distanciamento do mal estar que o contemporâneo insistentemente nos apresenta.

E, como moda, as ofertas do mercado são atraentes e pouco acessíveis aos assalariados comuns.

Eu sempre me encantei pelas geladeiras de portas mais arredondadas, fogões de abas, televisões de válvula. Refrigerantes, só aos domingos. Ir à feira e comprar pastel, apenas um para cada. Doces de leite da marca Confiança. Ou Neusa, mas nem sempre. Comer Dadinho? Uma vez por mês. Drops Dulcora ou Chu-cola era só quando íamos até a rodoviária para levar o tio Dante de volta para o Paraná, depois de uma visita muito esperada e de partida sofrida. Paçoquinha Amor, doce de abóbora de coração, Maria-mole com coco queimado, picolé de groselha, Fruco (o antecedente do Tang)... sempre provocam um certo sorriso, doces lembranças e brilho no olhar de quem, na época, era criança e também comia quebra-queixo e macarrão com frango aos domingos, sempre regado a Tubaína.

E a lista não para: tinha a radiola, o compacto simples e o duplo, o LP que a gente só comprava de vez em nunca. E se vinha visita, era um tal de correr, limpar mais a casa e passar enceradeira. Ou escovão. Eu achava o máximo passar escovão! Quando se conseguia comprar uma Kodak, o destino imediato era uma visita de domingo ao museu do Ipiranga para bater algumas fotos. O meu irmão, de sapatos de fivela e calça xadrez estilo Tremendão, com o corpo inclinado para a frente, com o indicador anunciando a minha irmão, bem ao estilo Roberto Carlos. Eu, de Ternurinha. A minha irmã, com lacinho na cabeça, com carinha de ué. No Fusca vermelho 67, a foto dos três num íman grudado ao painel com os dizeres “não corra, papai”.

Então, viramos retrô. Gostamos de falar disso. De falar na feira hippie da praça da República, do impacto das primeiras viagens de metrô, da descoberta da banana split.

E esse prazer tem suas raízes na segurança que tínhamos na época. Segurança, sim. Isso é fundamental para se fazer pessoas donas das suas responsabilidades , sem medo com desejo de futuro. Cada um tinha sua função definida e a criança sabia o papel de cada um. Pai era pai e tinha suas funções, assim como a mãe, os avós, os professores. Ser deseducado não era engraçadinho e nem passava despercebido. As orelhas tinham também suas propriedades além de ser o órgão do sistema auditivo responsável pela audição e equilíbrio. Sabíamos o que era certo e errado e os limites eram muito bem definidos e nada flexíveis. Lição de casa era para ser feita com capricho, carinho e desejo de aprender mais. O caderno deveria estar sempre limpo, bem como o uniforme e a lancheira. E exercitava-se a solidariedade com o colega e dava-se presentes para a professora com alegria.

Não me lembro de alguém falar alto com os pais ou professores. Antes, era bom pedir permissão para ir à casa da amiga, ao cinema ou mesmo dar uma volta no quarteirão.

Casamento era para sempre e se o amor não rolava mais, pelo menos se lutava pela manutenção do respeito.

A avó ensinava a honra, a valorizar a família, o conhecimento e a história. E gostava também de fazer doce de leite.

Na realidade estamos buscando e valorizando a estética do passado não apenas pela saudade, sobretudo das pessoas que já partiram para o outro lado do rio. Estamos sofrendo de uma terrível fome, que já se cronificou: uma fome de equilíbrio, de certezas, de segurança, de menos competição, menos deslealdade. Estamos à procura de limites como sinal de visibilidade e importância no coração dos nossos pais e mestres. Estamos envergonhados ao pensar – quanto mais ao dizer? – que a vida pode ser revestida de mais simplicidade e aconchego e que o shopping não resolve nada. Temos vergonha de correr atrás dos mais velhos para pedir alguma orientação nos nossos momentos de dúvidas porque dizem que o Google resolve tudo e que não precisamos nos abraçar porque as mensagens via Smartphone, absoluto e soberano, não param de chegar.

Essa procura por segurança emocional e psicológica se esconde nas imagens de latas de bolacha Duchen, na saudade de comer um Ki-bamba, em fazer um misto quente no antigo bauruzeiro e que fazia um creek a cada mordida que convidava ao silêncio. O lanche era cortado ao meio, dando um formato de triângulo escaleno. Gostamos da água de filtro de barro, mas o chic mesmo é água do filtro Europa. Nos escondemos ainda na garrafa de guaraná caçula ou nas lembranças das tentativas infantis de encontrar um palito premiado do picolé da Kibon ou uma surpresa estampada na parte interna da tampinha da garrafa de Pepsi.

Temos a vergonha do abraço e da delícia de um café com pão de queijo com o celular desligado. Vergonha da contemplação das doces montanhas, dos caminhos trilhados com sofreguidão pelos antepassados para abertura de espaços amplos e planos para os nossos pés.

Continuamos escondendo a nossa vergonha e vulnerabilidade por termos caído nas armadilhas de uma construção social sórdida, de uma tecnologia imperiosa que nos rouba emoções, de amizades distantes que se dizem verdadeiras... e continuamos com muito pouco conhecimento da ética, seu significado e sua verdadeira dimensão.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/03/2015
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