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O HÁLITO CACHAÇAL
 
       Em se tomando aguardente demais, é impossível que alguém não perceba, às lonjuras, os sintomas motores e psíquicos da burlesca e popularíssima cachaça. Ao olho nu, sem dúvida, você vai observar quando um indivíduo anda muito movido aos efeitos etílicos. Evidente que, de longe, só não vai sentir o hálito cachaçal. Ao longe, não; a química odorífica da tal moça-branca não chega até você. Agora, fique a um metro de distância de um gajo inveterado na água-de-briga... Aí, sim, o bicho pega.
 
      Aos milhares, há os críticos, mas também coexistem os partidários da velha assobio-de-cobra, espalhados pelos confins do nosso planeta. Com a boca enfiada na rosa-dos-ventos, existem até alguns sábios e eruditos que discorrem, ou já discorreram, sobre a água que passarinho não bebe. No dicionário do mestre Aurélio, por exemplo, consta uma infinidade de termos para designar a engasga-gato. E há ainda outro número – não menos considerável – de expressões que servem para indicar o ato de ingerir a mui popular bebida: alertar as ideias, molhar a palavra, morder a batata, e vai por aí adiante.
 
      Como é deveras árdua a tarefa de formar-se um pacto com as unanimidades, então, bem ou mal, sobrevivem ainda os adversários ferrenhos, aqueles desafetos e jogadores contumazes do time da oposição fundamentalista à discutida e polêmica filha-de-senhor-de-engenho.
 
      Uma batelada de mil aspectos, indo das letras cientificas às populares, comumente traça monografias, perfis, teses de mestrado e mesmo de doutorado sobre o assunto. Esses trabalhos realçam ou baixam o malho nos perigos pelos quais passam os papudinhos, vale dizer, os aficionados tomadores do líquido dos alambiques. Pois múltiplos, atualmente, lá desde os degustadores, são os especialistas no tema em pauta. Fervilham escritos, livretos ilustrados, cordéis, panfletos avulsos e belas dissertações acadêmicas, tudo na abordagem cachaçal.
 
      Sociólogos de botecos, letrados e arautos da moral vigente, pobres de espírito, profissionais liberais, juristas e assistentes sociais, simpatizantes de partidos e os próprios líderes partidários, prostitutas e homossexuais, psicólogos e donas de casa, leigos e otários, todo mundo publica montanhas de impressos, ora glorificando, ora a denegrir a imagem popularesca e folclórica da pobre pinga, que, em geral, alimenta a sede dominical de inumeráveis cidadãos desta pátria das novelas.
 
      Não lhe faço apologia, não; de modo algum. E quem puder nunca leve aos beiços um só gole da mamãe-de-luanda. Meu estômago é bastante camarada para não aceitá-la, e eu fico muito agradecido à natureza dos bofes por me ter feito assim. Heroicamente, no entanto, a branquinha resiste aos ataques do tempo. E não há bebida outra que a substitua. Nem os modismos todos, vindos lá das gringolândias da vida.
 
      Vejo alguns bebuns, quando ingerem uma lapada de cana, fazerem careta. Já vi muito isto, por aí. Outros, não; bebem a danada de gute-gute. E chegam a lamber o beiço. Fazer careta, ao passar para dentro uma dose da homeopatia, a meu modesto juízo, é uma baita indelicadeza com a birita. Não é mesmo? Se não gosta, não beba, ó meu! E certamente ninguém irá apreciar aquela ardência louca da quebra-goela.
 
      Certa vez, numa bodega – no Piauí, diz-se quitanda – um sujeito que atendia pela graça de Atchim, de cor muito retinta, ele bastante bonachão, apelou para o bodegueiro:
 
      – Ô Seu Chico, ‘tá na hora de salgar o galo. Bote aí um mata-bicho, bem na tampa, que o dia hoje vai ser de chuva.
 

      E o comerciante encheu o copo, e o pescador Atchim passou o precioso líquido para dentro.
 
Fort., 12/03/2015.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 12/03/2015
Reeditado em 14/03/2015
Código do texto: T5167216
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