Manuscrito encontrado em uma garrafa.

Manuscrito encontrado em uma garrafa.

O dia está nublado, os pássaros estão escondidos em seus ninhos de amor, um vento frio sopra do norte, sopra toda a sua angustia, todo o seu descontentamento. Estou sentado na frente da praia da estrela vermelha, não há ninguém ali, apenas eu sentado em uma velha cadeira de madeira, apenas eu, observando o vai e vem das ondas, a valsa das mares com a areia da praia.

Tudo é silêncio, tudo é mistério, as nuvens no céu é um mistério infinito, o solitário albatroz azul pousado próximo de mim, também é um mistério infinito, a vida e as flores são um mistério infinito.

Todos os dias logo nas primeiras horas da manhã, depois de tomar meu solitário café e comer meu pão de angustias, me dirijo a passos lentos para a praia da estrela vermelha, sempre me sento no mesmo lugar, na mesma velha cadeira de madeira, minha companheira há tanto tempo, fico quieto, contemplativo observando o vai e vem das ondas. Todos os dias nesses muitos anos eu sou massacrado por duras lembranças, lembranças de olhos inocentes, de faces de anjos ledos, lembranças de lábios pedindo misericórdia, lembranças de pequeninas mãos ensanguentadas, enfim, lembranças de corpos estendidos no chão, de mortes sem razão, de ódio sem sentido, diário de uma guerra estupida.

Todos os dias ao longo desses intermináveis anos eu planto minhas lágrimas na areia desta praia deserta, e sempre no mesmo lugar, religiosamente no mesmo lugar, não consigo me imaginar chorando em outro pedaço de areia que não seja neste pedaço de areia. Tornei-me um eremita exilado nesta ilha, sou o próprio esquecimento, sou uma lembrança ruim na mente de muitas pessoas, sou a nuvem negra em dias de tempestade, um céu sem estrelas, afinal, eu não sou ninguém, nem os pássaros desejam minha presença, a minha carne cheira a morte, como tudo em mim cheira a morte.

A minha história não é digna de ser contada, folha nenhuma devera ser manchada contando o que eu fiz apenas este manuscrito, que de próprio punho escrevo, que com lágrimas escrevo, sei que nunca vou ser perdoado pelas vidas inocentes que eu tirei, principalmente das famílias que foram desfeitas pelas minhas ordens em campo de batalha, pois quando eu era capitão da primeira divisão de infantaria do exercito, ordenei ataques a vilarejos, na minha cabeça eu estava servindo o meu país e protegendo os cidadãos da minha nação, eu só não imaginava que do outro lado, ao invés de armas e combatentes, havia mulheres e crianças, e todas morreram abraçadas, tudo pelas minhas ordens, tudo pela minha cega ignorância. Hoje reconheço o mal que eu causei, mas meu reconhecimento não trará essas vidas de volta, e nem o sorriso no rosto das famílias enlutadas.

Desde aquele dia, quando percebi o tamanho do meu erro, abandonei as forças armadas, perdi a minha família, perdi os meus amigos, perdi o direito de ser chamado de ser humano, me isolei nesta ilha deserta ao sul do Brasil, distante de tudo e de todos, e assim pretendo terminar os meus dias, morrendo lentamente, com o remorso das lembranças das mortes e dos corpos estendidos no chão, sem vida, sem a chance de viver um pouco mais, Meu nome é capitão Andrades Antunes, e este é o meu relato de guerra, quem encontrar está garrafa contendo este manuscrito, eu lhe peço encarecidamente, queime e não diga nada para ninguém. A ditadura fez de mim o mostro que sou hoje.

Tiago Pena
Enviado por Tiago Pena em 14/03/2015
Reeditado em 14/03/2015
Código do texto: T5169969
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