Por que os sinos dobram?

Imaginem que existe uma igreja, igual a todas as igrejas, e que ela tem um sino, igual a todos os sinos – pessoalmente, jamais vi um sino de igreja, mas imagino que sejam muito parecidos entre si. E imaginem também que este sino, não sabendo fazer outra coisa, se põe a badalar várias vezes ao dia. Faz parte da ordem natural das coisas que exista uma igreja com um sino e que ele badale de vez em quando. Agora imaginem como pode ser aborrecido ouvir um sino badalando.

Tão aborrecido que um dia alguém resolveu escrever uma carta ao jornal reclamando daquele sino que, embora católico, produzia um barulho dos diabos. Queixava-se o sujeito da excessiva frequência com que aquele sino trabalha, não descansando nem mesmo nos feriados e dias santos. Às quatro horas, ele toca quatro vezes, uma atrás da outra. Depois de quinze minutos, volta a tocar uma vez. E faz o mesmo quando chega a meia-hora e depois os três quartos de hora. Repete isso na hora seguinte e em todas as outras por toda a eternidade – tal é a missão do sino.

É provável que o homem que se queixa more perto da igreja e escute o sino tocando justamente nos horários em que pretendia descansar. É preciso dizer ainda que este sino, fiel cumpridor das tradições, também se põe a tocar desesperadamente às seis da tarde, na hora do Ângelus. Talvez toque também às seis da manhã, o que deve chatear alguns pobres cachorros que se queixam como podem – uivando –, além dos senhores de família que se queixam mandando cartas ao jornal.

No lugar onde minha mãe nasceu existe um sino que trabalha ainda mais. Se durante o dia ele começa a tocar de forma insistente, é um sinal inequívoco de que alguém morreu. E, ao ouvirem suas badaladas, os pacatos moradores do lugar puxam pela memória quem é que estava doente nos últimos dias e se perguntam se é por essa pessoa que o sino dobra. Ora, mas isso é no interior. Na minha terra o sino já não dobra por ninguém. A cidade cresceu tanto, e começou a morrer tanta gente, que o pobre sino precisaria passar o dia inteiro anunciando funerais – coisa que, por certo, resultaria no colapso da seção de cartas do jornal.

Também hoje, o sino deixou de regular as nossas horas. Houve um tempo em que se acertava o nosso relógio pelo relógio da igreja – que, aliás, se mantinha religiosamente atrasado. Há o sino da igreja, mas também há o relógio da igreja, no alto da torre. O relógio da igreja tem uma nítida vantagem em relação ao sino da igreja: ele não badala. Por outro lado, não é de todo lugar que se consegue enxergá-lo, e será preciso que, à noite, ele tenha algum sistema de iluminação interna. De todo modo, se ninguém mais acerta as horas pelo sino ou pelo relógio da igreja, que fique claro que não é por omissão deles.

Acontece que os tempos passaram, as cidades cresceram, as tecnologias evoluíram e nós até mesmo deixamos de ser católicos. Não é sintoma de outra coisa que o barulho nos incomode tanto. Quanto a mim, não ouço qualquer sino e não vejo qualquer igreja aqui da minha janela. Há até bastante silêncio, e talvez seja precisamente por isso que eu procure o barulho das páginas de um jornal.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/03/2015
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