MEU LIXO

Faz tempo que reluto em lhes dizer o que digo. Eu sei que sou linguaruda e já disse isso, de modo que todos vocês sabem que sou. Mas ao mesmo tempo que sou linguaruda, digo-lhes também que não digo tudo. É, eu não digo tudo. Porque tem coisas que não dizemos tudo, tem coisas que não são traduzidas, codificadas na escrita. Eu sei que vocês têm coisas inauditas, insonoras. Pois bem. O que me perturba é exatamente isto: aquilo que não dizemos. Mas hoje, como não saiu de meu pensamento, digo-lhes isso porque estou em busca da solução para o que sinto e, como sei que vocês são bem mais espertos do que eu, bem mais inteligentes do que eu, penso que ao cabo disso que digo, receberei a solução. O caso foi o seguinte.

Hoje eu varri a sala. Varri a sala como faço sempre, varri a sala como vocês varrem a sala de vocês. Vejam, é coisa muito cotidiana varrer a sala, todo mundo varre a sala e nisso, não há nada de esquisito, esquisito para alguns é não varrer a sala. Acho que é isso, como dizem, o grande X da questão. Nunca vemos o cotidiano como algo extraordinário, excêntrico, fabuloso, novato. O cotidiano, por ser cotidiano, é sempre algo muito comum, fácil, reles, sem importância e, com isso, não vemos que, o cotidiano pode guardar em si, algo terrivelmente ou não, também extraordinário. Se chegarmos mais perto, bem mais perto, o cotidiano deixa de ser cotidiano, ele não é tão simples, ele pode ser mais complexo, porque se esconde através de uma capa grossa de normalidade quando, na verdade, nunca fora. Compreendem o que digo?

Pois foi isso que aconteceu. Eu varri a sala. E não sei o que aconteceu, mas eu juro a vocês que eu varri exatamente igual a todas às vezes que eu varro, eu não varri diferente, não usei uma vassoura nova, ou algo diferente, apenas varri, simples, comum e cotidianamente. O que houve foi que, quando eu peguei o cabo da vassoura e, em seguida, guardei-a por trás da porta, ocorreu-me algo inusitado. Eu não conseguia guardar direito a vassoura. Naquele exato momento, fui acometida por uma profunda inquietação. Logo eu que, sempre varria a sala e colocava o lixo debaixo do tapete, eu que, fazia isso sempre sem ao menos perceber ou sentir qualquer incômodo, agora, não sei por que agora estava incomodada com aquilo...

Por que estava incomodada com aquilo? Por que o lixo que eu acabava de empurrar debaixo do tapete me incomodava tanto? Parece que o que eu havia colocado debaixo do tapete era meu. Eu, parada perto da porta e com olhar direcionado à sala, fitava o tapete e imaginava a quantidade de lixo que eu tinha posto debaixo daquele tapete. Muitas indagações me vinham à cabeça, inúmeras! Pensava eu que, será que somente eu coloco lixos debaixo dos tapetes? Será que somente eu varria a sala? Por que eu somente varria a sala? Qual a importância da sala? E aquele pensamento foi ficando cada vez mais profundo, cada vez mais foi se avolumando como se me levasse a um buraco negro, escuro. Eu continuava parada, estática. Comecei ainda a pensar que se eu varria somente a sala, então, decerto outros lixos deveriam existir na casa. CLARO!!! Havia outros lixos na casa, talvez muito mais encrustados, densos e difíceis. Como eu nunca percebi isso? Como??? O que estava acontecendo comigo naquele exato momento??? Teria alguma explicação???

Minhas divagações continuavam ao passo que minha inquietação crescia porque, antes, eu não tinha conhecimento do lixo, eu sabia que era lixo, mas eu não sabia da importância do lixo, eu não sabia a razão de eu o colocar debaixo do tapete e, pior, eu não tinha me dado conta que havia lixos em outros lugares da casa que nem eu mesma, dona e reprodutora dos mesmos, sabia!!! Era muito grave toda aquela descoberta! Tão grave que, por mais que meu medo fosse estratosférico, eu precisaria me aproximar do tapete, do lixo que estava bem ali em baixo, eu não tinha escolha!!! Eu sabia a existência do lixo e eu precisava fazer alguma coisa!!!

Respirei fundo e fui me afastando da porta, lentamente. Meu coração ia disparando cada vez mais em que eu chegava perto do tapete, minhas mãos iam ficando trêmulas e suadas. Agora, eu estava bem perto do lixo, bem perto. E o grande momento, talvez o grande momento, depois da descoberta dele, fosse o que estava para acontecer: eu precisava levantar o tapete e encará-lo. Permaneci ereta na sala. O meu indicador e meu polegar se ajuntaram para pegar a ponta do tapete e, como se eu estivesse a pegar em algo muito nojento e asqueroso, assim fiz: levantei a ponta do tapete.

Eu gostaria muito de descobrir se vocês, bem mais inteligentes e espertos do que eu, já fizeram isso, já levantaram a ponta do tapete onde vocês guardam seus próprios lixos. Eu não estou desafiando ninguém a fazer isso. Entendam-me. É que, quando eu faço isso, eu me sinto muito sozinha, eu não ouço que ninguém diga que levantou a ponta do seu próprio tapete ou se, varreu seu lixo para debaixo do tapete. Ninguém me conta sobre essas coisas. Daí, eu suspeito que não me contam ou eu não sei a existência de que outras pessoas façam isso porque simplesmente elas fazem sozinhas! É isso, elas não contam a ninguém que varrem apenas a sala, elas não contam a ninguém que colocam todo o santo dia o lixo debaixo do tapete e que, eu somente lhes conto isso porque sou prolixa, apesar de também não contar tudo, e conto tudo do pouco. Veja, eu estou contando por pura sorte mesmo, porque, igualmente a vocês, eu também ficaria aqui, sem ninguém saber.

O que ocorreu foi que quando levantei a ponta do tapete, eu vi algumas coisas absurdas e outras não. Tinha muito lixo esquecido lá, coisas que nem eu mesma sabia de sua existência! Tinha lixo para tudo que era gosto e governo. Eu estava com muito medo, eu juro. Um medo muito grande de encontrar coisas das quais eu não gostaria... E adivinhem? Foi o que mais encontrei. Ao passo que me aproximava daquela observação medonha, abstrata e estranha, vi que existiam lixos que apesar de eu os ter colocado lá, eles ainda me acompanhavam. Como? Eu tinha guardado muito sentimento debaixo daquele tapete. Muita coisa que me deixava triste, amarga, decepcionada, AM- PU - TA - DA. Todos os lixos, estranhamente quando guardados, deixam-nos amputados, essa é a palavra. É que eles estão debaixo do tapete apenas fisicamente, mas existe uma parte deles conosco. Nós somos tudo aquilo que deixamos de ser ou de fazer por causa do que existe debaixo do tapete. O que existe debaixo do tapete é muito perigoso, é um terrível inimigo, ele pode acabar com sua vida, ele pode impedir que você seja quem você é, justamente porque você colocou lá, esquecido. Percebam que, o lixo é lixo não porque necessariamente seja sujo, ou sem valor. O lixo pode ser lixo porque se torna esquecido, desvalorizado. É uma parte de você, SIM, é uma parte de vocês lá, jogada às traças, às baratas. E DIGO MAIS, VOCÊ NÃO VAI SER FELIZ ENQUANTO NÃO LEVANTAR O TAPETE E TIRÁ-LO DE LÁ. VOCÊ NÃO VAI. A SUA ESPERANÇA DE FELICIDADE NESTA VIDA É APENAS UMA: SER INTEGRAL.

Fui a mim mesma incentivando a levantar o tapete, coisa que não é fácil. E acreditem: quanto lixo ainda possuía sabor, cheiro e cor! Quanto! Era incrível!! O medo, de primeiro momento, foi dando espaço a um prazer, a um saudosismo, a um momento de pura identidade, de definição, de ser eu, era eu agora, totalmente. Eu era lixo!!! Também era aquele lixo!!! Eu tinha me esquecido de ser quem eu era e para que vim ser quem sou. Agora, era preciso somente ajustar alguma vassoura. Agora, eu estava disposta a varrer a casa inteira e, muito feliz por isso! Eu estava completamente disposta, alegre, satisfeita por sair varrendo e colocar o lixo, bem ali no meio da sala!!! Destruam os tapetes!!! Destruam-nos!!!! Quero todos os lixos na sala, bem no meio, para que o visitante de minha casa veja que, agora, eu varro é pra fora.

Eliane Vale
Enviado por Eliane Vale em 28/03/2015
Reeditado em 11/04/2015
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