HISTÓRIA DE UMA VIAGEM A NATAL... (3)
 
Acredito, salvo engano, eram dez horas da manhã. O sol forte se mostrava em todo o seu esplendor e, nas margens da estrada, o mato verde já começava a se sobressair das demais cores que as plantas ainda traziam da estiagem dos anos anteriores. É a vida que se renova, floresce exuberante, mesmo que as adversidades lhe impeçam momentaneamente. Dentro do carro o papo rolava solto: Ângela contando sobre o esperado nascimento do sobrinho/neto, Mário (no banco atrás do meu) prestava atenção ao mesmo tempo em que refletia sobre as iniquidades relatadas pelos companheiros, no seu dia a dia, na redação do jornal; o poeta Antonio Francisco confessou que estando viajando num carro com uma senhora de respeito e um padre santo, com certeza, metade de seus pecados ele iria deixar naquela viagem e o padre Guimarães sempre argumentando (todas as vezes que alguém lhe dirigia adjetivos tão maravilhosos) dizia: “menos, pessoal” – a sua humildade e o seu servir não lhe permitem a empáfia, embora a sua dedicação ao sacerdócio, o seu servir, a sua orientação espiritual lhe concedam a dádiva de um legítimo representante de Cristo e de São Bento entre os paroquianos e as comunidades em que ele se faz presente. E foi dele o convite para que todos nós pedíssemos e agradecêssemos por aquela viagem:

– Pessoal, costumo, em todas as viagens que faço, iniciá-las rezando um Terço. Alguém me acompanha?

 

Claro que o Terço foi acompanhado por nós católicos. Mário, judeu mais católico do mundo, respeitou, em todo o seu contexto, a meditação da Palavra Sagrada da Bíblia. O poeta Antonio Francisco olhava o horizonte, no banco do carona – ao meu lado – e, com toda certeza, preparava, na mente privilegiada, mais uma poesia para nos deleitar.

Terminada a reza, o ambiente ficou livre para as conversas triviais. Antonio Francisco, como já se esperava, começou uma série onde piadas de padre e de freira foram os destaques. Ríamos muito. Mário permaneceu calado, só ouvindo. Ângela, padre Guima e Antonio Francisco não paravam: metralhadora perdia em tempo de disparo de uma piada para outra. E hajam gargalhadas dentro desse carro. Metade do caminho sendo percorrido quando, de repente, um cheiro forte de queimado adentrou o carro. Era como se um carro estivesse tendo um curto-circuito em sua parte elétrica e/ou pegado fogo. Senti-me na obrigação de parar o veículo para ver se o cheiro não era proveniente do seu motor. Não era. Graças a Deus.

Retomamos a viagem. Um pouco mais adiante, infelizmente, presenciamos a causa do cheiro forte: um caminhão havia tombado e a sua carga pegado fogo. No local, ferros retorcidos, uma sinalização precária e um monte de gente (da localidade perto dali) esperando um momento de descuido para saquear a carga. Lamentável assistir a necessidade presente nas piores horas: justamente naquelas onde deveria se apresentar a solidariedade, a ajuda humana e material. Passamos e, por um trecho longo da estrada, meditamos sobre tudo isso.

Mas o dia era de festa. O padre Guimarães fez suas orações e pediu ao Senhor que olhasse para aquele servo, que já tinha tido a sua parcela de infortúnio, e lhe protegesse das demais intempéries daquele dia. E, de novo, o carro se fez gargalhadas em cada final de piada contada pelos ocupantes dele.

Meio do caminho: cidade de Lajes. Parada obrigatória no Posto Militão. Na loja de souvenires, o universo da cultura se faz presente. São quadros, mandalas, artesanatos variados e livros. Muitos livros de autores rio-grandenses. Fica a dica: se quiser adquirir um livro de autor potiguar e não encontrá-lo em nenhum lugar – e se for passando por Lajes/RN –, procure na lojinha de souvenires do posto. Com certeza, lá você vai encontrar. Depois de uma rodada de café expresso, retornamos à estrada.

Antonio Francisco contando piada é impossível ficar sem rir bastante...
... não é padre Guimarães e Ângela Rodrigues?
 
Interessante como a natureza é pródiga! É na metade do caminho que percebemos a mudança na vegetação. Parece que o mato é mais verde, o céu fica mais nublado, o clima se torna mais ameno, o cheiro de chuva se faz mais presente e a vida se anuncia a toda hora através do gado no pasto de relva mais apetitosa, das garças fazendo a festa na água acumulada em barreiros à beira da estrada, dos pássaros que voam cantando seus cantos de alegria, do sertanejo que acredita e faz a limpa da faixa de terra e passa a plantar ali o que irá lhe saciar a fome daqui a três meses; enfim, é na metade do caminho que se nota uma diferença no “comportamento” da natureza com relação ao seu semiárido. Isso nos trouxe ainda mais alegria.
 
O sertanejo sem terra aproveita as margens da rodovia para plantar o seu sustento

Ângela contava uma piada em cima da outra; o poeta Antonio Francisco, a todo o momento, se inscrevia para também contar uma sua. Padre Guimarães ria muito. Mário dormia o sono dos justos. Talvez estivesse pensando na sua famosa frase (e que é ênfase num dos meus livros) que diz: o homem inventa coisas para fugir da morte. Ele tem razão. Ali mesmo, a criatividade se fazia presente e cada um procurava, através do riso e da descontração, amenizar os efeitos biológicos, prolongando um pouco mais a sua passagem por esse planeta. Rir é bom e faz bem ao coração, segundo os médicos. Também acho. Mesmo não sendo um especialista, sou testemunha.

Continua...





Foto dos Sem Terra: marioangelobarreto.blogspot.com
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 29/03/2015
Reeditado em 15/10/2020
Código do texto: T5187592
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