SENTIMENTOS QUE ME VISITAM

O fato de ser canceriana com ascendente em câncer faz de mim a pior pessoa do mundo. Não que eu saia por aí cometendo atrocidades, mas eu coloco dentro de mim todos os sentimentos do mundo e é comigo mesma que eu me desentendo.

Os sentimentos, para mim, são tão intensos, que já se personificaram. Cada dia é um que me visita. Às vezes recebo várias visitas no mesmo dia.

Hoje eu fui visitada pela Rebeldia.

Ela me acordou cedo, mas eu não dei bola e continuei na cama.

Eles vêm mesmo sem ser convidados e chegam na hora que acham que têm que chegar. São inconvenientes. Às vezes o momento é de gravidade, seriedade e, de repente, chega o Senhor Bom Humor. Inusitado, sarcástico, irônico e sádico. Ele me faz passar vergonha. Já me fez rir em momentos trágicos. Ainda bem que sempre existe a desculpa do riso de nervoso – “é que quando eu fico nervosa eu começo a rir... desculpe...”.

Mas a Rebeldia gosta de chegar mostrando que tudo tem que ser diferente. Ela está sempre reclamando e criticando. A tudo e a todos. Não pára de falar. É difícil suportar sua presença.

Como eu não lhe dei atenção, ela entrou sorrateiramente pela minha boca quando eu tomei fôlego para mandá-la embora. Ela ainda está dentro de mim.

Eu queria fazer uma crônica sobre o mar porque, de manhã, quando olhei pela janela, vi um pedaço do mar. Ele estava lindo, mas a Rebeldia não me deixa pensar direito. Então minha crônica sobre o mar vai ter a interferência dela hoje.

Meu mar amanheceu lilás. Nas pequenas porções de água que subiam arrepiando-se com a carícia do vento, tons iridescentes de violeta mostravam-se furtivamente.

A espuma causada pelas ondas exibia-se em cores róseas cristalinas. Era como se o mar fosse uma drusa de amestista coroada com cristais de quartzo rosa.

A Rebeldia me disse em um sussurro interno que hoje não era o mar que refletia a cor do céu. Era o céu que refletia a cor do mar. Então ele era feito de vapor. Um vapor colorido e doce. Tinha tanta cor de flor que eu queria dizer que ele era perfumado. Mas a Rebeldia reclamou que eu estava ficando muito romântica e romantismo era ridículo e ainda me chamou de velha ridícula sentimentalóide.

Eu queria dizer algo sobre os grãos de areia que, dourados, pareciam como pequenos sóis em que se podia pisar com os pés descalços. A Rebeldia me deu um tapa na cara, interno, e perguntou se eu havia tomado chá de cogumelo.

Então as gaivotas que enfeitavam o céu lilás quase roxo com suas asas ebúrneas e... ok... ok... os urubus... não também... “quais pássaros, Dona Rebeldia?” – “Pombos”.

Então os pombos que cortavam o céu com suas asas cinzentas e desgrenhadas pelo forte e tempestuoso vento (eu queria dizer que era uma brisa suave...) caíam desengonçadamente na areia e roubavam a comida das pessoas que tomavam sol...

- Mas ninguém leva comida nas praias daqui, Rebeldia!

- E por que é que você tem que escrever as coisas como as coisas são, sua otária sem criatividade? O texto é seu, estrupício! Escreva o que você quiser!

- Mas você fica interferindo no meu texto... por que você está aqui hoje?

- Pelo simples fato de você não me querer aqui.

E então os pombos, graciosamente, aproximavam-se das crianças que faziam castelos na areia dourada enquanto comiam uvas...

- HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ! Uvas?

- Eu não quero que os pombos fiquem doentes comendo porcaria...

- As crianças é que vão ficar doentes comendo com as mãos sujas de areia, sua irresponsável!

- O pai delas estava com elas e dava as uvas em suas bocas.

- E ele tinha lavado as mãos?

- Tinha.

- Por que o pai e não a mãe?

- A mãe morreu.

Foi então que percebi que, bem atrás de mim, tinha chegado minha segunda visita do dia: o sombrio e dramático Senhor Pessimismo. Ele não nos cumprimentou porque ele não gosta de cumprimentar. Para quê cumprimentar alguém que nunca vai ter alguma importância nesse mundo? A Rebeldia saiu de dentro de mim pelo meu ouvido direito e, enquanto atravessava a parede da sala, rapidamente, me explicou que tinha que visitar outras pessoas.

- Anoiteça essa paisagem colorida e patética – mandou, com um olhar dominador. Eu convidei sua amiga mais íntima e logo ela estará aqui.

Os pombos fugiram assustados com a nuvem cor de chumbo que se aproximava. Uma rajada de vento cortante e gelado fez com que todos saíssem da praia. Menos os surfistas que acabavam de receber a visita da Rebeldia e aproveitavam as ondas altas que se formavam.

Malvado mar que parecia querer engolir a areia que perdêra totalmente a cor e agora era um pálido pó sem nenhuma beleza, como uma lixa áspera em uma paisagem hostil.

Queria escrever mais, mas não consegui, pois minha terceira e mais frequente visita chegou. Voltei então pro meu quarto com as duas visitas me acompanhando. Uma se sentou ao meu lado esquerdo e a outra ao meu lado direito. Os três suspiramos juntos. Eu não ofereci nada a eles. Eles não pediram nada.

O Senhor Pessimismo, depois de algumas horas, foi embora. Sem se despedir. Apenas fez questão de me lembrar que não adianta ter esperança.

- Nada vai mudar – ele falou.

Minha terceira visita do dia, que não conseguia mais viver sem mim, me envolveu em seus braços e disse docemente:

- Você viu como o céu está escuro? Nem as estrelas querem brilhar. Está tão frio... Parece que as flores do seu vaso estão murchando... morrendo... por que você não se deita? Não faça nada. Não adianta... não há nada interessante para se fazer. Cubra seu rosto. Eu vou apagar a luz.

Então ela deitou-se ao meu lado. Eu já me sinto confortável ao lado dela...