Crônica ou Uma Reflexão de Quatro Meses e Uma Vida

Um mês de dezembro cheio de loucura impensada, regado de bebida, fraca, forte, doce e amarga, todas juntas e misturadas. Um mês de aventuras e por alinhamento do cosmo ou benção divina, de suaves, tenras e entorpecidas ressacas. Acordei completamente amortecido em uma manhã daquele dezembro. O ano era 2014 (mas não por muito tempo), foi logo depois das comemorações natalinas. Alguns amigos vieram em casa e trouxeram carne crua, carvão, caixas de som, programas de discotecagem instalados em computadores pessoais, mulheres, e tudo que pediram em troca foi esse espaço para compartilhar e desfrutar de minha companhia e uns dos outros. De modo que tudo transcorreu de forma natural e alegre, ainda que buscássemos mais e mais estímulos, no copo e uns nos outros. A certa altura da noite, garrafas de bebida começaram a transitar pelas várias mãos, nessa celebração pagã e débil. Garoava, porém não estava frio, o calor do dia ainda se fazia presente mesmo diante da garoa soturna. Misturamos conhaque, vodca, uísque, vinho e cerveja de forma explosiva e indigente, como se cada gole oferecesse um vislumbre daquilo que mais... Daquilo que mais desejávamos no nosso íntimo (e ínfimo) existir.

Já na madrugada, alguns se despediram e voltaram (não sei como) para suas casas. Sobraram eu e mais quatro dos sete rapazes, e uma das três lindas moças presentes. Eles me ajudaram com a bagunça (ainda que todos, sem exceção estivessem muito embriagados): Limpamos o chão, apagamos o fogo, lavamos a louça, nada perfeccionista, apenas uma geral rápida. No portão, entraram todos em um Ford Escort 87, cuja correia do motor cantava em determinadas situações e embora o carburador estivesse funcionando bem e os freios e suspensões também, o motor fazia estranhas reclamações quando rodava em baixa rotação.

Fiquei de fora e me despedi de cada um deles.

Mas a madrugada havia apenas nascido e logo uma estranha ideia se apoderou deles, queriam fazer um giro no litoral. Resisti à tentação apenas para falhar mais uma vez diante da insistência deles e admito: A proposta não me soava nada mal. Temia por estarmos todos bêbados e no caminho haveria escuridão, a possibilidade de uma pane, haveriam curvas e outros carros e outros bêbados e outros infindos problemas... Quem em sã consciência toparia encarar essa aventura que beirava o risco de ser classificada como suicida? Por coincidência ou ironia do destino, não estávamos nem um pouco sãos. Entrei no carro e assim a bagunça seguiu dentro do Escort estrada abaixo até a praia (para ser mais exato, até onde ficamos acordados pois em dado momento todos adormecemos abarrotados naquele banco traseiro).

Acordamos quando nosso motorista não percebeu uma lombada e gritou "EITA PORRA, SEGURA!", para o deleite misturado ao desespero de todos nós. Dormi de novo e acordei com o estranho som de um motor. Abri os olhos e comecei a ver água em todas as direções e o barulho de motor não poderia vir do carro, era mais alto e robusto, mais torque e menos cavalos. O carro estava estacionado sobre uma balsa indo para Deus sabe lá que ilha, mas assim foi. Desembarcamos, estacionamos o Escort e seguimos por uma longa trilha durante prováveis cinquenta minutos, que pareceram devorar horas. O Sol vinha nascendo brando entre nuvens pequenas, finas e dispersas, vermelho, ganhando intensidade, quase como uma ressurreição luminosa e quente. A praia era praticamente deserta e por volta das seis da manhã, realmente estava vazia, apenas algumas horas depois vimos outras pessoas por lá.

Ainda bêbados, nadamos e pulamos, e deitamos na areia e chutamos ondas do raso, e vagamos até as bordas e bebemos mais cerveja e comemos salgadinhos e havia também Jurupinga. Foi um café da manhã e tanto. Dormimos mais um pouco de qualquer forma ou jeito, jogados pelas areia e poucas cadeiras que encontramos. Acordamos com o Sol das nove horas torrando nossos corpos desidratados e ébrios. Fomos embora. Paramos para um dos nobres guerreiros vomitar, pois estava enjoado do balanço do carro, depois disso o Ford Escort não quis mais dar partida. Foi quando os ânimos esfriaram e tentamos empurrar em todas as direções cardeais mas a coisa simplesmente se recusava a fazer aqueles pistões funcionarem. Foi só depois de muita tentativa e análise (não muito minuciosa) que percebemos que um fio que ligava o motor de arranque ao motor estava frouxo. O Ford e seu velho motor roncaram alto e todos ficamos felizes e voltamos para casa (mas não sem antes errar o caminho e fazer a descida de novo sem chance de avistar uma placa cheia de redenção escrita "RETORNO"). Fui direto para o trabalho, voltei para casa e depois adormeci profundamente (e com facilidade, o que era raro, pois estava pregado).

Acordei amortecido naquela manhã de dezembro e me peguei pensando em tudo isso. Olhei-me no espelho e refleti a respeito do que via. Quem eu era ou quem eu havia me tornado? Já fui tão diferente disso.

Fui por muito tempo a continuidade de uma criança espancada. Me lembro do pavor que sentia em ir para a escola, eu gostava de ficar no meu quarto e se pudesse jamais sairia dele. Mesmo hoje, tanto tempo depois, o quarto vazio, onde faço companhia a mim mesmo, é meu maior tesouro. Não que estudar ou sair fosse ruim, não era, mas era difícil demais, mais para mim do que para os outros. Estava sempre atrasado com as lições, estava sempre distraído e balançando os pés na cadeira, sentia vontade de ficar sozinho no jardim (descobri anos mais tarde que era vítima de um transtorno que dificultava minha concentração, não que isso fosse mudar qualquer coisa, piedade não há nas escolas). Mas eu sabia que qualquer deslize um pouco mais grave resultaria numa surra daquelas quando meus pais fossem comunicados. Isso contudo era rotina, eu apanhava de qualquer jeito, por qualquer motivo ou frustração que eles tivessem, não que eu fosse um santo, mas não era um demônio, ainda não. No recreio, as demais crianças sempre brincavam umas com as outras. As garotas e seus ensaios de esposa, bastante tediosos (o quanto tenho pena delas), sempre emulando a vida de casada, doméstica, mãe. Os garotos correndo e pulando e se divertindo, exibindo-se para as futuras mulheres padronizadas por uma sociedade estúpida e teatral, onde nada mais era esperado delas se não essa esposa ideal e antiga. Eu era estranho se comparado a eles, sempre atrasado, com notas baixas, amigo dos demais párias e esquisitos, todos que não faziam parte desse padrão, que não se misturavam, não eram aceitos. Várias vezes fui cercado e apanhei gratuitamente por não ser compreendido por eles, ou por deixá-los desconfortáveis e mais provavelmente, pela necessidade brutal e visceral que as pessoas tem de destruir tudo que seja diferente delas mesmas, ou quem sabe por pura diversão.

Meu divertimento nesses tempos era simplesmente comer os sanduíches de presunto com requeijão que minha mãe preparava durante o intervalo sem ser perturbado. Eu e os demais excluídos do convívio social ficávamos escondidos, nas sombras de uma casa onde as faxineiras e merendeiras se preparavam para trabalhar, uma construção separada do prédio principal (prédio onde as aulas eram ministradas). Era nosso esconderijo, raramente os solares e belos garotos sorridentes nos importunavam lá. O próprio lugar, nas sombras, era úmido e cheio de musgo nas paredes de cimento e pedra. Devia causar nojo, mas era um lugar natural para nós. Era nosso por direito. Raramente um grupo deles (dos normais) descobria, e nos mudávamos para outro beco, próximo à biblioteca que também ficava afastada do prédio principal. Era onde jogavam cadeiras e mesas quebradas e todo tipo de material danificado, um depósito de lixo para todos os fins práticos. Mas nem sempre funcionava, às vezes um de nós era pego e nada podia fazer se não aguentar os socos e pontapés. Isso não era o mais difícil, o mais difícil era aguentar a raiva e o sentimento de injustiça e impotência. Eu e todos aqueles pobres cristos, bodes expiatórios de lindos garotos de futuro brilhante, cheios de ódio gratuito para extravasar.

Minhas roupas as vezes ficavam sujas, pois terminava sempre no chão, derrubado. Pior que isso era quando rasgavam. A infância foi uma época difícil, não tínhamos muito dinheiro e o país estava recentemente se adequando a estabilidade dos preços depois de longos anos de inflação. Minha mãe remendava todas as calças e camisetas, mas não sem antes me dar um belo corretivo. Jamais contei o motivo daquelas roupas estarem rasgadas e aceitava ainda, sem ter muita escolha, mais aquela surra. Apanhar em casa era uma rotina também, minha mãe estava constantemente frustrada e estressada, com dois filhos para criar e uma casa para administrar, contas para pagar e os problemas dos demais parentes que ela se preocupava em resolver.

Então, por todas essas razões, sempre adorei ficar preso e confinado no meu quarto, era um lugar onde ninguém me abusava, ninguém apontava dedos ou me batia sem motivo algum. Eu não me sentia culpado. Afundava minhas horas nos jogos eletrônicos: A realidade que eles ofereciam sempre me foi muito mais heroica e honesta. Ainda que virtual, eram (ainda são) mundos e vidas muito melhores para se habitar. Eram minha fuga. Meus bonecos me davam margem para viver histórias impossíveis e deliciosas, o Lego me permitia construir o pano de fundo para a vida que eu queria viver, e não a que eu vivia.

Isso é o que me separava deles: Eu fantasiava a vida que eu queria, eles viviam o que queriam viver.

Conforme fui crescendo, passei a desprezar mais e mais os esnobes vencedores - e os medianos que os idolatravam também - pois eram todos iguais e desinteressantes, eram apenas ego e mais ego inflado. Eu me identificava apenas com os que apanhavam, com os que perdiam, os que sempre figuravam entre os últimos colocados, os feios, os socialmente exclusos das rodas de conversa e os que frequentemente eram alvos de chacota. Eles sempre traziam no olhar a mesma resiliência que eu, o olhar de quem suportou tudo isso e perseverou silenciosamente e isso era tudo que bastava, um olhar e sabíamos de tudo. Tive a impressão, que aquilo era uma competição velada: Quem iria se suicidar primeiro, ou talvez fosse o contrário, quem vai por último? Definitivamente não era um mundo hospitaleiro, era hostil e brutal, especialmente para nós (acho que posso falar por todos eles).

Esse ar de desprezo era mais e mais evidente. Eu não me importava mais. Me engalfinhei algumas vezes e cheguei a quebrar um nariz e deixar o belo rosto de um garoto de olhos azuis e sorriso de rato cheio de hematomas (além disso ele perdeu um dente). Passaram a me importunar um pouco menos, ou vinham em maior número, mas eu não expressava mais nenhuma dor, aguentava tudo sem lacrimejar ou fazer caretas. Estava me fortalecendo nessa exclusão, essa solidão imposta e com o passar dos anos, essa mesma solidão me oferecia conforto, como as coxas macias de uma virgem.

Eu já não tentava entender o porque de tudo aquilo, porque de repente, tudo ficou claro. Os espancamentos, os garotos sorridentes, as fãs dos garotos vencedores, as ofensas, o desdém das professoras para com qualquer coisa se não o cronograma, por que ninguém nunca fazia nada, tudo fez sentido. Era a ordem natural das coisas: Alguns nascem vencedores, e os vencedores caçam os perdedores, para alguns a vida era fácil, e isso dava o total direito de pisar e humilhar nos que possuíam vidas difíceis. Ninguém se importava, não há holofotes para o perdedor, para o diferente, o excluído. O pátio das escolas era o que separava os queridos dos odiados, os sorridentes dos aprisionados, os vencedores dos perdedores, o Sol das sombras, o pátio era o que nos esmagava, era onde éramos obrigados a conviver com isso, a segregação inexplicável e as consequências. Alguns nasciam especiais, outros eram escarros da terra, e quem se importava? Sempre houve injustiça, ódio e violência, mas quem se importava? Quem estava interessado em mudar tudo isso? Eu respondo: Ninguém estava, e ninguém esta.

Ignorava a cada dia mais a companhia deles, delas, de tudo que ia além do meu quarto. Mas estava crescendo, entendendo, mudando, era como se meus olhos estivessem se abrindo para uma nova dimensão de compreensão e tudo estava se tornando mais fácil (mas não pense que mais suportável por isso). Eu andava por entre os corredores ignorante dos risinhos das garotas e suas chacotas, andava pelo pátio indiferente aos pontapés repentinos. Não que eu tivesse escolha, mas decidi por mim mesmo não fazer parte daquilo, não me encaixar, ignorá-los. Não fazia diferença se iriam ou não me excluir, eu me excluiria do convívio deles, manteria para sempre uma distância.

Mas haviam (e ainda há) alguns pobres coitados que me acompanhavam, e eles tornaram tudo isso um pouco mais fácil. Estávamos todos no fundo do poço, e tudo que nos restava era andar até nossos becos e rir um pouco da estupidez que vivenciávamos.

A indiferença mesclada com desprezo fez com que os covardes protegidos por todo esse sistema que privilegia os que já praticamente nasceram privilegiados, se afastassem, eles não me incomodavam tanto agora. Eu já era um adolescente a essa altura, e o gosto da covardia já não era tão doce para eles, de modo que aos poucos me esqueceram e buscaram vítimas mais prazerosas para perturbar, até mesmo alguém dentre as próprias fileiras deles (como uma serpente que se canibaliza). Eu passava uma confiança diferente, da qual eles não estavam acostumados, da última vez que me cercaram eu sorri e olhei fundo nos olhos do mais empolgado com a ideia de me surrar mais uma vez, apenas sorri e encarei e isso bastou para que desistisse e desarmasse os punhos. Era confuso demais para aquele idiota, a ideia de correr riscos, o risco de uma reação, do inesperado, do nariz quebrado, o risco de sentir dor, de ficar feio diante das fãs, de modo que era possível ver as engrenagens girando em sua mente tentando entender aquela situação. Seus comparsas gritavam ofensas e ameaças mas estavam igualmente perdidos, eu apenas continuei ali aguardando (afinal aquilo era uma rotina, não me era surpresa alguma). Desistiram. Pela primeira vez, eles não deram risadas ao partirem, pareciam transtornados, inconformados, conversavam sobre o ocorrido como conversavam sobre a derrota de seus times de futebol do coração, com os rostos suados de raiva e os olhos arregalados, inconformados.

As minhas notas melhoraram na mesma época, e os conteúdos ministrados nas aulas, antes apenas chatos, agora faziam sentido, ainda que a maioria fosse inútil na prática. Não só melhorei que agora aquilo tudo era um desafio vencido, não, nem se podia chamar de desafio, meu boletim era um dos melhores da escola agora. As garotas foram pouco a pouco abandonando as chacotas, o escárnio não era algo coerente. O mundo de todos eles e elas, os habituais queridos, entrando em colapso e eu no outro canto, assistindo tudo de camarote.

Isso foi por volta dos catorze ou quinze anos. Foi quando também, por alguma razão, o interesse em garotas começou, mas com meu histórico social, não tinha qualquer esperança ou tato para nessa questão, superar qualquer outro. Para eu e meus poucos amigos, era um passou ousado, talvez até ousado demais. Dentre elas havia uma em especial que, verdade seja dita, sempre tinha sido gentil. Na sala de aula, sempre reservava alguns minutos para ir até a minha mesa e se sentar e puxar papo e dar sua opinião sobre mim e sobre qualquer coisa que ela sentisse vontade de opinar no dia, e eu ficava ali meio que sem saber o que era esperado de mim e o que eu devia fazer, ouvia tudo pacientemente e vez ou outra sorria e falava algo quando isso parecia ser o certo. Ficava feliz por ela estar ali, mas perdido, desconfortável, eu não sabia o que ela esperava daquilo tudo! Me pareceu muitas vezes, que ela apenas sentia pena de mim, e se compadecia daquela solidão (tanto imposta quanto escolhida, afinal, meus poucos e bons amigos estavam em outras turmas e a maior parte do tempo eu estava na sala de aula).

Não posso dizer que me apaixonei por ela, era muito inocente e inexperiente para definir isso e talvez até mesmo para sentir. Mas eu gostava dela. Ela pedia conselhos sobre um monte de coisas e problemas que eu não tinha e por isso, não sabia o que dizer, mas de alguma forma, ela gostava do que eu tinha para dizer, ela sempre voltava e se sentava ao meu lado e passava mais tempo conversando do que pretendia. Era uma garota sorridente, e pelo que me lembro, nunca me ofendeu ou a qualquer outra pessoa gratuitamente. Apesar de ser uma das garotas mais populares do colégio, ela não era esnobe e tinha um bom coração além de sua alegria extravagante.

Passado um tempo, eu ainda me via cercado pelos mesmos tipos de sempre, eu era (sou) como um imã para eles, para todos os estranhos e loucos. Estávamos no colegial, no auge da adolescência e eu seguia no único grupo que me aceitava e eu aceitava, sempre os isolados. Haviam agora algumas estranhas, meninas pouco vaidosas, excluídas pelas populares (aquelas sem nenhuma personalidade). Contudo, não fazíamos mais questão de nos esconder em becos, pelo contrário, ficávamos em evidência, ocupando um espaço onde todos nos viam e todos os príncipes e princesas entre os normais nos contemplavam, ainda que obrigados. Nosso isolamento era uma escolha, não buscávamos nos misturar como eles tanto faziam, ficávamos ali, tão somente ali, esperando o tempo passar, conversando, sem precisar de mais nada ou ninguém.

Foi nessa época também, por volta dos dezessete anos, no último ano do colégio, que me envolvi com uma garota. Ela me abraçou gratuitamente durante o intervalo, beijou os dois lados do meu rosto e de repente me beijou, para minha total surpresa. Resumindo: Fiquei com ela por alguns meses, não dávamos certo, vivíamos discutindo e brigando (como crianças), mas aquela garota loira e expressiva, branca como uma folha de sulfite, foi uma professora. O maior presente que ela me deu, além do primeiro beijo, foi a ousadia. Ela me dizia: "Meu ex-namorado quase não me tocava, você pode me tocar, isso é bom!" e movia minha mão para seu seio e pressionava minha mão com a dela.

Até ela, eu não fazia nem ideia do que fazer e acabei por tentar (ainda assim tentei) e acabei, obviamente, rejeitado por várias garotas pelas quais me enamorava. Em matéria de sentimentos, tudo me era desconhecido: Só conhecia, no íntimo, a raiva e o medo, o desamparo de não haver qualquer escapatória do meu cotidiano de negligência, dissidência e violência. As rejeições, ainda que na maior parte das vezes muito educadas, doíam tanto quanto um soco bem dado no estômago. Você pode enlouquecer com a rejeição e pode aprender com ela, mas nem sempre pode escolher o que fará a respeito e isso faz parte, é uma consequência do jogo.

Não culpo essas donzelas por não me desejarem, eu não fazia ideia do que fazer para atraí-las, provocá-las, não fazia ideia de nada! De um modo geral, isso não mudou muito, mas sigo aprendendo e ainda que flertar não me deixe confortável, tenho tido relativo sucesso agora (talvez mais por sorte do que mérito e/ou habilidade) e vez ou outra surge uma beldade e com a mesma facilidade com que surgem elas se vão. Ainda não aprendi a mantê-las por perto e não sei dizer se quero realmente isso, aprender isso, depende muito de quem se quer ou não quer manter por perto.

De certa forma, até aí, percebi que eu havia sido moldado por tudo que eu suportava, não pelo que eu sentia ou acreditava. Deve existir coisa pior, mas é terrível pensar que não é o que você acredita e pensa, não é o que você sente que esta te construindo, mas sim o que você se viu obrigado a suportar todos os dias. Sentia-me triste frequentemente (e ainda me sinto), não entendia porque o mundo era tão ensolarado e caloroso com alguns e tão hostil e frio, quase gélido, com outros? Nós éramos ensinados que todos podíamos ser vencedores, pelos filmes, desenhos animados, jogos eletrônicos, nas escolas, os meus agressores eram todos heróis e heroínas e eu era o terrível vilão. Mas e nós? Os esquisitões? Para nós aquilo não fazia o menor sentido, éramos heróis apenas para nós mesmos, por suportar tudo isso mais uma vez, mais um dia, por apenas mais um dia, dia após dia... Para nós não haviam guias e exemplos de como atravessar tudo isso com dignidade e calma. Para nós, restava apenas o desespero. Não havia ninguém para ensinar sobre isso, sobre os que suportam a necessidade de crueldade dos normais, dos "heróis", sobre os que sofrem em silêncio e com a maior resiliência que conseguem reunir ao longo da vida e muitos perdem essa capacidade de reunir forças, não conseguem manter a vontade de, ainda sim, seguir em frente, seguir suportando. Quem fala sobre os suicídios? Sobre injustiça? Não é fácil dar o bom combate, não é fácil encontrar motivos para seguir dando combate.

Por tudo isso, eu me tornei naturalmente rígido e distante conforme crescia. Aos vinte e um anos de idade, estava sofrendo de estresse e experimentei um longo período de depressão, que durou quase dois anos. Olhando para trás agora, faz todo sentido ter me tornado depressivo, foi algo natural, tudo me levou até lá. Não me lembro muito daqueles dias (e agradeço por isso), exceto que estava na pior em todos os sentidos, tudo apenas se agravou ao ponto de quase se tornar insuportável. Pensei (e tentei) jogar a toalha algumas vezes, mas minhas tentativas foram frustradas, por mim mesmo, por Deus, pela fada do dente, seja lá o que tenha sido, ainda estou aqui.

Já longe do espelho, me afastei das lembranças ruins, busquei lembrar quem eu era, a personalidade. Algumas coisas mudaram, outras permanecem. Me irritava facilmente, não tinha muita paciência, era empático sem contudo ser humano (talvez por estar cercado de crueldade), mantinha sempre certa distância e buscava ficar sozinho quando tinha a oportunidade (isso não mudou nada), algo em mim causava desconforto nas pessoas comuns, o modo como caminhava ou como falava, não sei, mas talvez tenha sido isso que fez eles me odiarem por tanto tempo. Era muito rígido comigo e com aqueles ao meu redor, era censurador e enfadonho em dados momentos. Liberdade era algo que me intrigava, afinal, sempre figurei entre os oprimidos. Era e ainda sou um bom observador e um bom ouvinte e penso que estes podem bem ser minhas melhores qualidades (ainda que alguns discordem).

Nos dias de hoje, tive de algumas pessoas seus vislumbres sobre essa pacífica questão. Uma amiga poetisa que vive lá nos confins da distante Bahia, chamada Nanda, disse-me:

"Você é sem escrúpulos, contanto que te faça feliz tu não se importaria de jogar-se de um precipício. Você parece estar sempre de bem com a vida e parece saber como aproveitá-la, ainda que seja um pouco indeciso. Também não tem medo nenhum de dizer o que pensa e não tem problema em dar sua opinião, ainda que de vez em quando seja chato. Vive com a cabeça no passado, mas pelo menos entende que não vai voltar pra lá."

Posso tirar a razão dela? Não. Está certa sobre praticamente tudo que disse, ainda que hoje em dia eu esteja quase sempre de bem com a vida, não sei se realmente sei aproveitá-la, acho que o mais honesto é dizer que eu tento, tento um pouco mais que a média das pessoas tenta. Uma outra amiga (e ex-namorada) tem uma visão diferente:

"Sempre que penso em você eu vejo um cara usando chapéu, sentado no bar, sozinho ou acompanhado de algum amigo de longa data, bebendo uísque ou vodca enquanto repara nas ancas fartas de uma das garçonetes, pensando no que irá escrever sobre isso. Eu poderia ficar ali do outro lado do bar acelerando o tempo e vendo como sua feição muda, mas sua alma não, continua ali, intacta. Apesar de confundir todo mundo com seu sorriso alegre e a voz doce, eu vejo tristeza nos seus olhos. O interessante e o que acho mais bonito é a forma como você transforma essa tristeza em poemas ou textos. De certa forma, te acho uma pessoa marcante."

É um pouco exagerado, porque não vou muito ao bar, assim como todo o resto, os bares também me irritam depois de um tempo. Gosto de pensar que sim, minha alma permanece intacta, ainda que tenha dúvidas a respeito disso, pois como a Nanda pontuou, de algum modo estou vez ou outra com a cabeça no passado.

Amiga de dividir cervejas e conversas no fim de um ou outro expediente, Stela, me ofereceu um boa reflexão (como sempre) sobre isso:

"O mais legal, foi que você deixou que eu observasse seus mistérios, sim, você é misterioso, mas eu aprendi a te observar. Falando em observação, você pensa ser apenas um observador mas não sabe que é muito mais o observado das relações. Viajo nas suas histórias malucas, não sei se sua vida é tão maluca ou se você é apenas um bom contador de histórias, mas sempre gostei de ouvir. No geral, você chama a atenção, exceto a sua própria."

Até aqui, apesar de diferentes, acho que hoje sou mesmo um apunhado de tudo isso. Não sei se conto bem histórias, se sei aproveitar bem minha vida maluca enquanto bebo uísque e reparo nas ancas de uma moça, não sei se minha alma existe e, caso exista, se esta intacta. Não sei se sou indeciso e por vezes chato e também não sei se sei transformar tristeza em qualquer outra coisa. Sei apenas que não posso tirar suas razões e ainda que concorde com praticamente tudo que elas disseram, mantenho ainda um ceticismo que é tipicamente meu, como sempre, me dando o privilégio da dúvida.

Por fim, ainda que já cansado de pensar a respeito, me lembro do que Marie, minha companheira de aventuras, me disse e que conclui bem a questão, resume tudo que foi dito:

"No geral você é uma pessoa gentil e não diria que é um observador, mas é atento à coisas que os outros não percebem. É muito carinhoso sem ser meloso, pra falar a verdade você até tem lá sua dose de acidez. Já passou por muita coisa ruim e eu sinto que ainda carrega consigo essas coisas."

Posso me definir hoje, olhando para mim mesmo e ciente até do que as pessoas pensam sobre minha pessoa, que superei sim grande parte do meu passado e sobrevivi as minhas provações, digo até que soube atravessar elegantemente por elas. Eu poderia ter sido muitas coisas, tanto boas quanto ruins, o mundo me deu todos os motivos para que eu desistisse mas algo dentro de mim meio que continuava me alimentando, me dando forças para aguentar, não sei bem o quê ao certo, mas ainda está aqui, pode ser esperança ou pode ser apenas teimosia minha. Tive a oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas, meus iguais, que passaram por seus próprios apertos e também seguiram em frente e hoje são quem são, e feliz ou infelizmente pude conhecer de perto o outro lado também, de pessoas desprezíveis e socialmente aprovadas, existindo como feridas na terra e causando todo tipo de violência contra tudo que difere deles mesmos e talvez, por ter visto tão de perto os dois lados da moeda, posso hoje, depois de um longo tempo, dizer que ter sido, ser e continuar sendo o Vinícius que todos vocês conhecem, tem sido uma grande aventura à sua própria maneira!

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NOTA DE AGRADECIMENTO:

Agradeço de coração a Fernanda, pela contribuição e pela revisão, a Aimê e a Stela pelas contribuições e constante suporte, e a Mariane por me dar o empurrão final.

Página da Fernanda

http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=136434

Página da Stela

http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=149854